Deve o Brasil persistir no fomento aos biocombustíveis mesmo com a descoberta da volumosa reserva de petróleo do pré-sal?

frisson causado pela descoberta das reservas do Pré-sal – estimadas entre quarenta e cinquenta bilhões de barris equivalentes de petróleo e que colocaria o Brasil, no mínimo, entre as dez maiores reservas do mundo – trouxe à tona a discussão apaixonada do nacionalismo e da aplicação das riquezas minerais do Brasil. Nesse contexto, encontra-se o debate do papel dos biocombustíveis na política energética nacional.

A precificação correta da reserva do Pré-sal pelo mercado, a escolha de um modelo exploratório apropriado e a utilização dos recursos para promoção do desenvolvimento do País são questões cruciais, mas que não elidem a necessidade de o Brasil continuar com a mais bem-sucedida política de energia renovável do mundo – o fomento aos biocombustíveis.

Inicialmente, cabe destacar que há riscos e incertezas no processo de extração de petróleo das reservas do Pré-sal que não devem ser desprezados, ainda que o Brasil tenha sido capaz de desenvolver tecnologia para exploração de petróleo em águas profundas, colocando-o como líder em prospecção nessas condições.

Mesmo que os desafios tecnológicos sejam vencidos, a exploração plena do Pré-sal levará alguns anos. Além disso, o volume de extração diário irá crescer de modo progressivo, o que leva à necessidade da existência de outras fontes energéticas complementares.

Em segundo lugar, é importante não se olvidar que parte importante das reservas de petróleo do mundo se localiza em áreas de instabilidade política, o que tem gerado flutuações de preço[1]. Além disso, uma taxa de extração de 85 milhões de barris por dia indicaria que o petróleo mundial pode ser exaurido em 40 anos[2]. Adicionalmente, a questão ambiental tratada reiteradamente em fóruns internacionais mostra que os países terão de mudar suas posturas para combater o aquecimento global, com ou sem um bom tratado internacional. Essas razões seriam por si só determinantes para que o Brasil sopesasse cuidadosamente a importância da inserção dos biocombustíveis em sua matriz energética nacional.

Além das questões de geopolítica e tecnológica retromencionadas, faz-se premente, também, uma análise focada na importância do setor sucroalcooleiro para o desenvolvimento sustentável do País. Sob esse fulcro, sete razões internas principais emergem para que o Brasil persista com uma política proativa para os biocombustíveis, qualquer que seja o contexto macroeconômico.

Primeira, as experiências com biocombustíveis no Brasil já têm mais de um século e constituem-se em um verdadeiro feito tecnológico, ambiental, econômico, social e político do Brasil. Ademais, a produção, processamento e distribuição de biocombustíveis no País contaram com a parceria da sociedade e do Estado que desenvolveram cultivares de cana-de-açúcar adaptados ao clima e solo brasileiros e tecnologia nas usinas e em toda cadeia para produção eficiente de açúcar, álcool e bioenergia, mais recentemente.

Segunda, o setor sucroalcooleiro tem grande importância econômica para o Brasil. Sozinho representou cerca de 2% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro em 2008, ou seja, uma produção da ordem de US$ 28,2 bilhões, equivalente a um quarto do PIB do Kwait para aquele ano[3]. Ademais, a arrecadação de impostos agregados foi estimada em US$ 6,86 bilhões (equivalente a cerca de 6% da arrecadação do Imposto de Renda em 2008)[4].

Terceira, o setor sucroalcooleiro é um grande gerador de empregos e paga salários compatíveis com o mercado de trabalho agrícola brasileiro. Nas atividades de produção de álcool, incluindo o plantio, 465.236 trabalhadores (cerca de 8,5 vezes o número de funcionários da Petrobras em 2008[5]) são empregados em 25 estados.Os únicos Estados que não estão envolvidos na produção do setor são Roraima e Amapá[6]. Além disso, em 2007, o trabalhador de cana-de-açúcar recebeu o segundo maior salário médio entre os trabalhadores rurais, ficando atrás apenas do trabalhador da soja, que, em geral, tem maior grau de educação.

Quarta, os biocombustíveis brasileiros são responsáveis pela redução de emissão de CO2 na atmosfera. Estimativas indicam que o álcool emite 89% menos CO2 que a gasolina. Ademais, que a emissão de gases do efeito estufa, entre 1990 e 2006, teria sido 10% maior se não tivesse sido utilizado o etanol no Brasil (essas contas excluem a emissão devido às queimadas). Outro dado surpreendente indica que, do início do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) da Organização das Nações Unidas (ONU), em julho de 2005, até julho de 2009, o etanol brasileiro evitou a emissão de gases de efeito estufa equivalente a 60% dos créditos de carbono gerados por esse mecanismo no mundo![7]

Quinta, os biocombustíveis brasileiros contribuem para melhoria da vida da população nas grandes cidades e para redução do custo com a saúde. Inicialmente cabe destacar que, graças ao uso do álcool anidro, que é adicionado à gasolina, pôde ser possível a substituição completa do chumbo tetraetila – produto cancerígeno, que era usado para aumentar a octanagem da gasolina e como anticorrosivo nos motores. Além disso, estudos indicam que se o etanol fosse substituído por gasolina, somente na cidade de São Paulo, haveria 416 mortes a mais por ano e 25.680 internações, o que ampliaria o custo com a saúde em US$ 138,1 milhões.[8]

Sexta, os biocombustíveis podem contribuir para ampliar a produção energética brasileira de forma limpa. O Brasil apresentou uma matriz energética com 45,3% de energia renovável em 2008, a mais limpa do mundo. O fomento aos biocombustíveis pode ajudar a manter a matriz energética brasileira limpa. Entre os benefícios da bioeletricidade podem ser destacados: tempo de construção reduzido; baixo impacto ambiental; o período de safra é complementar à geração das hidroelétricas, portanto a bioeletricidade pode ser produzida em período seco, quando as hidrelétricas produzem menos; e maior proximidade com o sistema elétrico interligado[9]. Não se pode desprezar que o potencial de cogeração de energia elétrica a partir do bagaço seja da ordem uma e meia vez a capacidade de geração da Usina Hidrelétrica de Itaipu.

Sétima, os biocombustíveis podem contribuir para fortalecer a indústria nacional, gerar empregos e renda de forma sustentável para o Brasil. A produção de biocombustíveis no País conseguiu responder a todas as demandas, induziu desenvolvimento tecnológico – a ponto de, inicialmente, provocar o desenvolvimento do carro a álcool nacional e, em 2003, o primeiro carro bicombustível – e cumpriu importante papel na redução dos impactos ambientais. Além disso, promoveu importante papel no desenvolvimento de usinas e equipamentos nacionais, fazendo do país líder mundial no setor. A persistência nessa estratégia pode consolidar ainda mais a posição brasileira.

Por fim, mas não menos importante, espera-se que o Brasil se torne um dos maiores países do mundo neste século. Projeções do Banco Goldman Sachs, posição novembro de 2007, indicam que o País poderia ser maior do que qualquer economia europeia depois de 2030 e superaria o Japão em 2040. A tendência é que o País se firme como a quarta economia do mundo até meados deste século, atrás apenas da China, Índia e Estados Unidos[10].

Portanto, o crescimento econômico e desenvolvimento do Brasil irão demandar quantidades de energia crescentes, que poderão ser supridas pela exploração das reservas do Pré-sal, mas também, com segurança, pelos biocombustíveis. O Estado brasileiro não pode desconsiderar o investimento, a pesquisa e o know-how na área de biocombustíveis desenvolvidos em mais de um século no Brasil. Esse grande patrimônio foi conquistado à base da sinergia entre a iniciativa privada e o Estado. Assim, à luz dos argumentos expendidos, entende-se que a participação dos biocombustíveis na matriz energética brasileira deve ser fomentada, ainda que estejamos sentados sobre um mar de petróleo do Pré-sal.


[1] Mello, F. O. T., Paulillo, L. F., Vian, C. E. F. (2007) O biodiesel no Brasil: panorama, perspectivas e desafios. Informações Econômicas, 37 (1).

[2] Sauer, I. L. (2008) O petróleo é nosso, o pré-sal é nosso, a Petrobras é nossa. Cadernos Aslegis nº 35 – A exploração do Pré-sal, Brasília.

[3] The World Bank: World Development Indicators database, 1 July 2009. Gross domestic product (2008).

[4] Neves, M. F., Trombin, V. G., Consôli, M. A. (2008) Mapeamento e Quantificação do Setor Sucroenergético em 2008. MARKESTRAT/FUNDACE, São Paulo.

[5] Hipótese de a Petrobras ter 55 mil funcionários.

[6] Moraes, M. A. F. D., Costa, C. C., Guilhoto, J. J. M., Souza, L. G. A., Oliveira, F. C. R. (2009) Externalidades Sociais dos Diferentes Combustíveis no Brasil. http://www.unica.com.br/downloads/estudosmatrizenergetica/pdf/Matriz_Social_Moraes2.pdf.

[7] Macedo, I. C., Meira Filho, L. G. (2009) Uso do etanol contribui para reduzir aquecimento global. http://www.unica.com.br/downloads/estudosmatrizenergetica/.

[8] Saldiva, P. H. N., Andrade M. F., Miraglia S. G. E. K., André P. A. (2009) Etanol e saúde humana: uma abordagem a partir das emissões atmosféricas. http://www.unica.com.br/downloads/estudosmatrizenergetica/pdf/Matriz_Social_Saldiva4.pdf.

[9] Castro, N. J., Brandão, R., Dantas, G. A. (2009) Bioeletricidade, sintonia fina com a agenda mundial. http://www.unica.com.br/downloads/estudosmatrizenergetica/.

[10] Ministério das Relações Exteriores – MRE (2008) Relações Brasil-Ásia, Curso de Política Externa do Itamaraty, Brasília, mimeo.