O que é guerra fiscal?

Alguém já disse que toda unanimidade é burra. Não sei se essa regra se aplica ao consenso brasileiro a favor da reforma tributária. Digo isso porque considero a reforma tributária uma falsa unanimidade. Todos a desejam, é verdade – empresários, trabalhadores, consumidores, estados, municípios e – pasmem! – até a União, que tem sido a grande beneficiária do nosso caos fiscal. Mas cada um a quer por razões diferentes e com objetivos diferentes. Portanto, cada grupo almeja uma reforma tributária diferente, incompatível com a reforma tributária pretendida pelos demais, e unanimidade é o que menos há nesse tema.

Para começar, empresários, trabalhadores e consumidores querem uma reforma tributária para pagar menos tributos; já municípios, estados e a União a querem para combater a sonegação e a guerra fiscal – isto é, para elevar a arrecadação. Fato interessante: a União quer uma reforma para elevar a arrecadação dos Estados, já que a sua tem sido fonte inesgotável de alegrias. Tanto que o Governo Federal acha até melhor não mexer em seus tributos – nem para criar novos (como o imposto sobre grandes fortunas – IGF), nem para ressuscitar os falecidos (como a contribuição sobre movimentação financeira – CPMF).

Uma reforma tributária pode mirar muitos objetivos: justiça fiscal, eficiência econômica, simplificação tributária, repartição de recursos entre os entes da Federação, desoneração de exportações, etc. Mas no Brasil – em que pesem certas tentativas abafadas de tempos em tempos – a reforma tributária virou um samba de uma nota só: seu único objetivo tem sido evitar a chamada “guerra fiscal” entre os estados.

Infrutífero objetivo, aliás; malsucedida reforma que nunca aconteceu.

A abertura da economia, no início da década de 1990, e a estabilização de 1994 criaram um novo ambiente de negócios no país e começaram a atrair capitais, estimular a instalação de novas empresas e a ampliação das existentes. Percebendo a oportunidade, os estados da Federação (inclusive o Distrito Federal) passaram a disputar os novos investimentos. Instituíram benefícios fiscais variados, muitos dos quais com base no ICMS, para atrair as empresas ­– especialmente as industriais, mas também comerciais (atacadistas, por exemplo) e de alguns serviços.

Após a estabilização monetária, o equilíbrio fiscal e a sustentabilidade da dívida pública passaram à frente na agenda política. Por isso, as propostas de reforma tributária convergiram, pouco a pouco, na direção do combate à guerra fiscal, que ameaçava os orçamentos estaduais e poderia tornar-se um calcanhar de aquiles da estabilização. Pelo menos era o que argumentavam os defensores da reforma: era preciso manter a arrecadação dos estados, para garantir que as dívidas estaduais não crescessem.

Desde então, testemunhamos algumas variações sobre o mesmo tema. Os demais objetivos da reforma ficaram, quando muito, para segundo plano. Mesmo o capítulo mais recente dessa novela – a redução das alíquotas interestaduais do imposto (que explicarei em seguida) – não rompe essa tradição.

Para perceber a dimensão do problema, é importante notar que o ICMS é a principal fonte de receita própria para a ampla maioria dos estados, em especial para os mais industrializados e para aqueles que têm maior potencial de industrialização – que são os protagonistas da guerra fiscal.

A reforma tributária não acabaria com a guerra fiscal, mas enfraqueceria substancialmente o seu principal instrumento, que é o incentivo concedido com base no ICMS. Para entender melhor a questão e as soluções propostas, é importante entender, antes, como funciona o ICMS. Como o ICMS é um imposto bastante complexo, vou simplificar a exposição, atendo-me ao que interessa e ignorando algumas tecnicidades do tema.

O ICMS incide sobre a circulação de mercadorias entre diferentes estabelecimentos e na venda a consumidor final, e também sobre a prestação de alguns serviços de comunicação e transportes. É um imposto estadual, mas também incide sobre a circulação de mercadorias e serviços entre pessoas em estados diferentes da Federação. Até 1996, incidia também sobre algumas operações de exportação.

Para avaliar o poder que os estados detêm na guerra fiscal, é preciso saber que o ICMS poderia obedecer a um de três regimes: o regime de origem, o regime de destino e o regime misto.

No regime de origem, uma transação realizada entre um comprador de um estado e um vendedor de outro geraria receita apenas para o estado onde se encontra o vendedor (ou seja, a operação seria tributada apenas pelo estado de origem da mercadoria ou serviço).

No regime de destino, em contraste, essa transação geraria receita apenas para o estado do comprador (ou estado de destino da mercadoria ou serviço).

No regime misto, os estados partilhariam a receita do imposto segundo alguma regra pré-definida.

No Brasil, adotamos o regime misto. Para definir a partilha entre os estados, criamos duas categorias de alíquotas de ICMS: as alíquotas internas e as alíquotas interestaduais. Digo que são duas categorias de alíquotas porque há duas alíquotas interestaduais e inúmeras alíquotas internas. As alíquotas interestaduais são definidas por resolução do Senado Federal, e as internas, pela legislação tributária de cada estado.

A alíquota interna incide sobre todas as operações ocorridas dentro do estado. Em geral, é de 17%, embora haja casos em que passe de 20%.

A alíquota interestadual somente incide sobre as transações ocorridas entre contribuintes de estados diferentes. Nesse caso, o estado de origem recebe o equivalente à incidência da alíquota interestadual sobre o valor da transação, e o estado de destino receberá o equivalente à incidência da diferença entre a alíquota interna prevista na sua legislação de ICMS e a alíquota interestadual. Assim, o imposto é partilhado pelos dois entes, sem que o contribuinte pague mais por isso.

Um exemplo ajudará a visualizar melhor. Suponhamos que uma empresa industrial de Minas Gerais venda uma mercadoria para uma empresa localizada no Paraná, no valor total de R$ 10 mil. Nesse caso, é necessário saber qual é a alíquota interna do Paraná. Digamos que seja de 17%. Então o imposto total devido na operação é de 17% sobre R$ 10 mil, ou R$ 1.700,00.

Como a alíquota interestadual, nesse caso, é de 12%, caberá à Fazenda de Minas Gerais a quantia de 12% sobre R$ 10 mil, ou R$ 1.200,00. O Tesouro do Paraná arrecadará o restante, ou R$ 500,00, equivalente à aplicação da diferença de alíquotas (17% – 12% = 5%) sobre a base de cálculo de R$ 10 mil. Note que, somando as duas parcelas, obtemos os mesmos R$ 1.700,00 que seriam arrecadados pelo Estado do Paraná, se a mercadoria adquirida pela empresa paranaense tivesse sido fabricada naquele estado, em vez de sê-lo em Minas, e não ocorresse partilha do imposto.

No caso das alíquotas interestaduais, há apenas duas. A alíquota geral, de 12%, incide sobre quase todas as operações interestaduais. A alíquota reduzida, de 7%, incide apenas nas operações em que o estado de origem esteja nas Regiões Sul e Sudeste, exceto o estado do Espírito Santo, e o estado de destino esteja nas Regiões Norte, Nordeste ou Centro-Oeste ou no estado do Espírito Santo.

Então, se a empresa de Minas Gerais do exemplo acima vender mercadorias no valor de R$ 10 mil para uma empresa situada na Paraíba, e supondo que a alíquota interna da Paraíba também seja de 17%, o total do imposto pago sobre essa operação será o mesmo, mas a repartição entre os estados será diferente. Minas Gerais ficará com o valor relativo à alíquota interestadual reduzida de 7%, ou R$ 700, enquanto a Paraíba ficará com os 10% restantes, ou R$ 1.000,00.

Essa é uma forma de assegurar aos estados do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste uma participação maior nas receitas de ICMS. Mas também lhes confere uma vantagem importante sobre os demais estados na guerra fiscal, pois quem tem mais, também pode conceder mais incentivos fiscais.

A alíquota interestadual desempenha papel estratégico na guerra fiscal, embora os incentivos tipicamente sejam vinculados ao valor total do ICMS devido. É a alíquota interestadual que permite ao estado atrair empresas, oferecendo-lhes vantagens que superam o seu sacrifício de receita. É uma mágica interessante, e o segredo reside no fato de que, no sistema brasileiro, os estados têm aliviado a carga do imposto que seria cobrado nas operações de venda a outras unidades da Federação.

Assim, se uma empresa da Paraíba vender uma mercadoria para outra de Minas Gerais, aplica-se a alíquota interestadual de 12%. Mantendo o exemplo de que o produto custa R$ 10 mil, então a Paraíba pode conceder incentivos sobre o tributo devido de R$ 1.200,00 a uma empresa que se instale no seu território para produzir e vender para cidades do Sul e do Sudeste. Já o Estado de Minas, que tem direito a uma alíquota de 7% para vender para Paraíba, só poderá dar incentivos fiscais de R$ 700, em uma transação similar, em que se produza em Minas para vender para a Paraíba e outros estados do Nordeste e do Norte.

O objetivo do estado que concede um benefício para reduzir de fato a alíquota interestadual é atrair uma empresa que ainda não opera em seu território. Logo, ele não arrecada nem um centavo a título de alíquota interestadual com as operações dessa empresa e, a rigor, pouco perderia ao oferecer uma isenção a ela. Quem perderia mais é o estado onde essa empresa está localizada, que deixaria de arrecadar o imposto sobre as vendas dela aos demais estados, caso a empresa se mudasse para o estado que oferece o incentivo.

O estado que concede o incentivo ganha mais: ao atrair a empresa, ele provavelmente atrairia também alguns de seus fornecedores, ou fortaleceria os fornecedores que já estão instalados em seu território, e criaria mais empregos. Isso tende a gerar um aumento de receita tributária que pode contrabalançar a perda do ICMS devido nas operações internas. Logo, a conta fecha positivamente para o estado que oferece o incentivo fiscal.

Para evitar essas disputas possivelmente danosas aos orçamentos estaduais, a Constituição proibiu a concessão unilateral de incentivos com o ICMS, forçando a atuação cooperativa dos estados, na forma de lei complementar. Coerentemente, a Lei Complementar (LC) 24/75 proíbe expressamente a concessão de incentivos com o ICMS sem que haja aprovação unânime dos estados.

Ora, a disputa de sede e localização de empresas entre estados concorrentes tem potencial para gerar conflitos intermináveis e muito pouca concórdia. De fato, as leis estaduais que criam incentivos fiscais com o ICMS têm sido aprovadas nas Assembleias Legislativas e aplicadas ao arrepio da LC 24/75, e passando por cima da autoridade do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que é o fórum para apreciar a aprovar as concessões de incentivos fiscais com o ICMS.

Quero que o leitor perceba que o vigor da guerra fiscal deve-se à existência da alíquota interestadual, que é típica do regime misto. Se o ICMS fosse integralmente ou preponderantemente de destino, a guerra fiscal seria muito enfraquecida, e não feriria (ou feriria muito pouco) as finanças dos estados.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de diversas leis estaduais que concediam incentivos fiscais com o ICMS, por inobservância da LC 24/75. Essa decisão esclarece as regras para concessões de incentivos fiscais e contribui para que cada estado saiba o que tem a ganhar e a perder em uma eventual reforma tributária. Com mais segurança jurídica, a negociação tende a ficar mais clara. No entanto, há ainda uma ação a ser julgada, que tem o potencial de inverter o quadro atual. A regra de aprovação de incentivos fiscais no Confaz, estabelecida pela LC 24/75, exige unanimidade dos estados presentes. A necessidade desse consenso está sendo questionada, também na Corte Suprema.

No início de 2011, o Poder Executivo Federal anunciou que estuda proposta de reforma tributária baseada na redução das alíquotas interestaduais do ICMS a 2%. Essa proposta, muito mais simples do que a unificação das alíquotas do ICMS, encontrará, decerto, alguns inimigos. Os estados mais industrializados, que derivam forte receita das operações interestaduais, dificilmente terão interesse em aprovar uma iniciativa que os prive dessa fonte de recursos. (Além disso, essa proposta teria outras consequências, relevantes para os estados exportadores.)

Considerando as diversas propostas apresentadas, creio que a mais atraente, sob diversos aspectos, é a criação de um imposto sobre o valor adicionado (IVA), em substituição à legião de tributos incidentes sobre o valor adicionado, a receita ou o faturamento (ICMS, IPI, PIS, Cofins, ISS).

No entanto, muitas das propostas até hoje apresentadas trazem no pacote um aspecto desnecessário e que pode atrapalhar a aprovação da reforma. Falo da unificação das alíquotas internas, que passariam a ser idênticas, para cada produto ou serviço, em todo o território nacional. Embora haja previsão de alguma flexibilidade, essa unificação limitaria substancialmente a possibilidade de praticar alíquotas mais baixas, criando um obstáculo à guerra fiscal.

Por outro lado, essa unificação é arriscada, pois deixaria os estados à mercê de decisões nacionais que não necessariamente atenderiam suas necessidades. Essa heteronomia fiscal seria ainda mais perigosa porque a maior parte dos gastos públicos tem caráter obrigatório, e muitas despesas são inflexíveis. Apesar de abrir espaço para sensíveis reduções de alíquotas (em especial as relativas a energia elétrica, combustíveis e telecomunicações, atualmente muito altas), a criação de uma receita igualmente inflexível poderia desorganizar a administração financeira de alguns estados. Por isso mesmo, geraria pressão política para elevar, mesmo quando dispensável, as alíquotas do ICMS dos demais estados, criando uma tendência ao aumento da carga tributária.

Mas, além do combate à guerra fiscal, para que é necessária uma reforma tributária?

Certamente não para pagar menos tributos. Para isso, bastaria reduzir alíquotas, o que independe de uma reforma tributária. Para simplificar o sistema tributário, entretanto, seria extremamente útil, e talvez seja esse o maior ganho potencial de uma reforma tributária hoje no Brasil, considerando o emaranhado de leis, portarias, regras e exceções e a sobreposição de tributos de natureza semelhante, para desespero do contribuinte. E também para conferir maior neutralidade ao sistema e impedir que induza ineficiências econômicas. A cumulatividade (que por si só vale outro artigo), foi reduzida para as grandes empresas, após a reforma da legislação do PIS e da Cofins, mas se expandiu para as pequenas e microempresas, que não foram abrangidas por essas mudanças e que, ao aderirem ao Simples, ingressaram em um sistema cumulativo por natureza.

Lamentavelmente, a convergência da reforma para uma e apenas uma de suas vertentes empobreceu a discussão e limitou os objetivos a serem alcançados. Como nem o caminho escolhido rendeu frutos, restou um cansaço do tema e uma sensação de impotência, reflexos do malogro sucessivo de inúmeras tentativas.

Já estamos debatendo o tema há mais de 20 anos. Não há necessidade de ideias inovadoras ou mirabolantes. Sabemos onde aperta o sapato tributário e quais soluções simplesmente não vingarão. E mesmo que não o soubéssemos por nós mesmos, bastaria inspecionar a experiência internacional – à qual, país da jabuticaba que somos, temos tanta aversão.

O impasse da reforma tributária é um vergonhoso atraso na agenda política do país. Se não desatarmos o nó das negociações, a reforma, à moda do solilóquio de Hamlet, jamais sairá do to be or not to be. Ou, se sair, será apenas para avançar algumas linhas mais, até o melancólico to die, to sleep, no more.