Por que a intervenção do governo pode gerar prejuízos à sociedade?

Já foi postado neste site um texto, de minha autoria, com o título “Por que o governo deve intervir na economia?”, em que argumento que existem “falhas de mercado”, como externalidades, assimetria de informações ou restrições à competição que reduzem o nível de bem-estar da sociedade. Uma intervenção do governo para solucionar essas “falhas de mercado”, se bem executada, pode elevar o nível de bem-estar da população. No presente texto vou discutir o outro lado da moeda: as “falhas de governo”, ou seja, os fatores que podem fazer com que as intervenções do governo gerem distorções maiores que aquelas que ele se propõe a resolver. Assim, toda ação governamental deveria ser precedida de uma análise prévia sobre as suas vantagens (correção de falhas de mercado) e desvantagens (possíveis falhas de governo decorrentes daquela ação).

Problemas de escolha coletiva

O processo de decisão governamental é feito de forma diferente do processo de decisão individual. Se pretendo comprar um carro, faço uma análise dos custos dessa compra e dos benefícios que ela vai me proporcionar. Ao fazer isso, uso minha escala de valores individuais para avaliar os custos e benefícios (se dou muito ou pouco valor a ter um carro bonito; ou se prefiro um carro mais barato que não seja tão bonito; avalio quanto estou disposto a pagar por um câmbio automático ou um banco de couro; etc.). As minhas preferências podem ser diferentes das preferências do meu vizinho, mas nesse processo decisório apenas as minhas preferências são relevantes.

Nas decisões governamentais temos um processo de escolha coletiva, em que os valores e preferências de todos os eleitores devem ser levados em consideração, o que torna o processo decisório muito mais complicado. Além disso, não há uma votação direta de todos os eleitores cada vez que uma decisão de governo tem que ser tomada. As pessoas votam em representantes (deputados, governadores, etc.) que passarão a representá-las nas decisões públicas. Esses representantes votam um orçamento, para que o dinheiro público seja gasto.

O representante político, ao votar por este ou aquele gasto público, terá dois problemas. Primeiro, ele não conhece inteiramente as preferências de seu eleitorado. No máximo ele tem uma idéia de que, por exemplo, o seu eleitor está demandando mais segurança pública e menos educação pública, ou que prefere menos impostos com menos serviços do que a expansão dos serviços financiada por mais impostos. Segundo, o seu eleitorado não é homogêneo, e ele terá que encontrar uma forma de atribuir pesos às diversas preferências.

Mesmo que as pessoas sejam perguntadas, em pesquisa de opinião, sobre as suas preferências por serviços públicos, elas não terão incentivo para revelar suas verdadeiras preferências. Suponhamos que se faça uma pesquisa em que se pergunte a cada eleitor que tipo de serviço público ele deseja, e que se avise a esse eleitor que ele terá que pagar impostos proporcionalmente aos serviços que queira receber (quem escolher mais serviços públicos pagará mais impostos). Esse tipo de consulta incentivará os eleitores a dar respostas que subestimem a sua real demanda por serviços públicos, para evitar pagar por eles. Eu não vou dizer que gostaria de ter mais policiais nas ruas. Vou esperar que outra pessoa dê essa resposta e arque com esse custo. Uma vez que haja mais policiais nas ruas eu também vou me beneficiar disso sem precisar pagar a conta.

Por outro lado, se for feita a mesma pesquisa, avisando-se ao eleitor que, independentemente da lista de serviços públicos que ele elencar como desejáveis em resposta à pesquisa, ele pagará um imposto prefixado (não relacionado com a quantidade de serviços públicos desejados), então ele terá incentivos a superestimar suas verdadeiras demandas. Afinal, já que vai pagar a mesma coisa por 5 ou 10 policiais nas ruas, o eleitor prefere ter 10 policiais.

Note que a resposta do eleitor depende da maneira como é feita a pergunta, isso, em Economia, é estudado pela Teoria de Desenho de Mecanismos.

Mesmo que se considere possível em um sistema democrático conhecer as preferências de cada eleitor, e que seja possível consultá-los a cada decisão, o processo decisório pode ter um viés na direção da expansão do gasto público e da intervenção do governo na economia.

Tal viés acontece porque na maioria das economias, e a economia brasileira não é uma exceção, a distribuição de renda não é simétrica em torno da média. Há uma concentração maior de pessoas abaixo da média, dado que umas poucas pessoas muito ricas puxam a média para cima. Isso significa que a renda mediana[1] será menor que a renda média. Se a tributação for proporcional à renda, então o eleitor com renda igual à mediana pagará menos impostos que o eleitor com renda igual à média.

Pagando menos impostos que o restante da sociedade, todos os eleitores com renda igual ou inferior à mediana tenderão a preferir mais serviços públicos (pois são subsidiados pelos demais eleitores), enquanto os eleitores com renda igual ou superior à media tenderão a  preferir menos serviços públicos (pois pagam proporcionalmente mais impostos). Porém, como o primeiro grupo é mais numeroso, ele tende a ganhar as eleições e o resultado será uma tendência à expansão do gasto público.

Basicamente o que se tem é um grupo (eleitores de renda igual ou inferior à mediana) pegando carona no gasto financiado pelos eleitores de renda mais alta. Esse mesmo fenômeno pode ter manifestações distintas. Por exemplo, em um país organizado sob a forma de federação, os governos estaduais terão incentivos a buscar recursos federais (impostos pagos por contribuintes de todo o país) para investir em projetos que beneficiem principalmente os moradores do estado. É o que ocorre, por exemplo, com as famosas emendas parlamentares, em que os deputados e senadores de um estado têm incentivos a colocar despesas em favor de seus estados no orçamento federal. Afinal, os eleitores desses estados estariam recebendo benefícios sem ter de pagar integralmente por eles.

Outra manifestação comum desse tipo de problema é a sobreposição de programas públicos executados pelo governo federal, estadual e municipal. Digamos que os políticos percebam que um determinado programa (por exemplo: distribuição de leite a famílias de baixa renda) gera muitos votos. Então tanto o presidente da república, quanto o governador e o prefeito desejarão obter esse ganho eleitoral para seus respectivos partidos, e introduzirão programas semelhantes, gerando um excesso de oferta daquele serviço público.

Sintetizando, o problema da escolha coletiva gera tendência ao aumento dos gastos públicos e consequente aumento dos impostos. Daí a necessidade de regras e instituições que ponham limites a essas pressões, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, limitações a emendas parlamentares e possibilidade de contingenciamento de despesas.

Problema principal-agente e informação assimétrica

Os eleitores não têm como monitorar plenamente os políticos eleitos. E os políticos eleitos não têm como monitorar os servidores que nomeiam para gerenciar as políticas públicas. Por isso, servidores e políticos podem, no exercício da função, buscar os seus objetivos individuais (ampliar poder político, enriquecer, trabalhar pouco, etc.) em vez de buscar os objetivos da comunidade, uma vez que não há informação suficiente para que se conheça a real eficácia de sua gestão.

O problema do principal–agente surge em condições de informação assimétrica, ou seja, quando os atores envolvidos não possuem a mesma quantidade ou qualidade de informação. No caso, o “principal” contrata o “agente” numa situação em que pode haver conflito de interesses, de forma que o “agente”, por deter informação privilegiada, e terá incentivos para tirar proveito pessoal do negócio do “principal”. Por exemplo, um eleitor (principal) não conhece todos os detalhes contratuais  e de custos de uma compra pública, o que abre espaço para um agente (gestor público) superfaturar a compra e obter ganho privado.

Diversos fenômenos conhecidos surgem desse problema. Suponha uma empresa pública que preste serviço de abastecimento de água. A intenção inicial do governo, ao criar essa empresa, foi lidar com uma falha de mercado conhecida como “monopólio natural”. Não é eficiente que várias empresas fornecedoras de água instalem encanamentos pela cidade para distribuir água às residências. O custo seria muito alto. É mais barato ter uma única rede de distribuição. Mas, nesse caso, a empresa operadora será monopolista e poderá cobrar muito caro pela água. Uma solução possível é prestar o serviço por meio de uma empresa estatal que, não tendo fins lucrativos e sendo voltada para o bem coletivo, irá estabelecer um preço justo para a água.

Ocorre que os políticos e servidores nomeados para gerenciar a empresa (agentes)  podem resolver usar o poder de monopólio em proveito próprio. Aproveitando-se da menor informação que os eleitores (principais) têm sobre custos e receitas da empresa, os “agentes”, em vez de fixar um preço da água que apenas cubra os custos operacionais e de investimento, fixarão preço mais elevado e usarão o excedente em seu favor (altos salários, participações no lucro, baixo esforço para ser eficiente, contratação de pessoas de seu grupo político, etc.).

Outro exemplo interessante: uma conhecida falha de mercado (associada à falta de informações relativas a garantias para empréstimos) faz com que alguns setores da sociedade (como pequenos agricultores, micro e pequenos empresários) não tenham acesso ao crédito oferecido pela rede bancária tradicional. Essa falha de mercado justificou a criação de bancos estaduais no Brasil, voltados a ofertar crédito a tais segmentos. Mas o resultado foi uma falha de governo. Os governadores e gestores dos bancos estaduais (agentes) passaram a gerir tais bancos em desacordo com os objetivos anunciados aos eleitores (principais): os bancos estaduais viraram, em sua maioria, financiadores de campanhas eleitorais e de “empresários amigos”, deixando grandes rombos financeiros que acabaram sendo pagos pelo governo federal. O resultado final, em termos de bem-estar social, foi negativo.

Inexistem incentivos à eficiência.

Atribui-se ao economista Milton Friedman[2] um interessante raciocínio sobre o incentivo a analisar custo e qualidade dos produtos ao se decidir por uma compra. Quando eu compro um produto com o meu dinheiro para o meu uso, eu me preocupo em analisar tanto o preço quanto a qualidade do produto. Afinal, tanto os custos quanto os benefícios do produto vão recair sobre mim.

Porém, quando compro alguma coisa com o meu dinheiro, para o uso de outra pessoa, me preocupo mais com o preço que pagarei do que com a qualidade. Nessa situação, não serei o usuário do produto, logo minha preocupação recai mais sobre os custos (que pagarei) do que sobre os benefícios (que recairão sobre outra pessoa). Pense no seu processo de decisão ao escolher um presente para o seu amigo oculto na festa de fim de ano no trabalho: você certamente sabe que seu colega gostaria mais de ganhar um IPAD, mas acaba concluindo que ele ficará feliz com um CD ou um livro.

Quando vou comprar alguma coisa para o meu uso, pagando com o dinheiro dos outros, vou olhar mais para a qualidade e me preocupar menos com o preço. Pense em um adolescente fazendo compras com o cartão de crédito do pai.

Na situação em que vou comprar alguma coisa para ser usada por outra pessoa, pagando com um dinheiro que não é meu, não vou me preocupar nem com o preço que pago, nem com a qualidade do produto. Essa é a situação de um funcionário público que está adquirindo bens e serviços a serem usados pela população.

Ou seja, o incentivo do agente governamental para buscar o menor preço é baixo, pois não é ele que está pagando diretamente pela compra. Também não vai fazer grande esforço para buscar qualidade, se o serviço público é para atender a população em geral e não ao servidor em particular.

Há, também, pouco incentivo à inovação no serviço público. Em geral, a inovação é estimulada e bem remunerada no setor privado, pois ela é fonte de geradora de lucros. Já no serviço público impera a regra da obediência ao regulamento e da responsabilização individual em casos de fracasso. Nesse contexto, por que devo inovar, se corro o risco de errar e ser responsabilizado? Prefiro cumprir os regulamentos e esperar pelas promoções por tempo de serviço. O resultado é a aversão ao risco e o apego a procedimentos burocráticos.

Associe-se a isso a estabilidade no emprego e estará completo o quadro de desestímulo ao esforço. No caso brasileiro, do ponto de vista do servidor, a competição ocorre antes (no concurso) e não durante o exercício profissional. As pessoas fazem esforço colossal para serem aprovadas em concorridos certames de seleção para o serviço público. Mas, uma vez aprovadas, não correndo risco de demissão por baixo esforço, nem vislumbrando ganhos salariais decorrentes do esforço individual, reduzem seu nível de dedicação ao trabalho.

Além disso, o setor público é monopolista na prestação de muitos serviços (infraestrutura urbana, policiamento, controle de poluição, justiça, etc.), logo não há o estímulo à eficiência gerada pela competição.

Alto custo de transação nas decisões públicas

Imaginemos que o parlamento está prestes a votar uma lei que autoriza um aumento de 0,5% na tarifa de telefonia. Uma empresa telefônica que fature, digamos, R$ 2 bilhões por ano, tem uma expectativa de ganho de R$ 10 milhões com a aprovação da lei. Para ela será lucrativo gastar, digamos, R$ 1 milhão em pagamento a lobistas para pressionar pela aprovação da lei. Além disso, como são poucas as empresas de telefonia operando no país, será fácil, para elas, juntarem-se para financiar o lobby em favor do projeto.

Olhemos, agora, o lado de um consumidor que gaste R$ 2 mil por ano em sua conta de telefone. Para ele, o custo adicional da aprovação da lei será de R$ 10. Vale a pena para ele fazer esforço e se mobilizar com vistas a economizar R$ 10? Quanto tempo e dinheiro ele irá gastar para conclamar os milhares de usuários de telefone a se organizarem para protestar em conjunto?

Ou seja, os lobbies em favor de interesses específicos, de grupos restritos, levam vantagem nas decisões políticas, pois têm menor custo de transação e maior resultado financeiro esperado nas decisões tomadas pelo governo; enquanto que, para a maioria que paga a conta, não vale a pena o custo de se mobilizar para brecar a demanda do lobby (o custo é dividido por todos e o benefício é concentrado).

Todos os grupos que conseguirem arcar com os custos de mobilização tendem a levar vantagem no processo de decisão política em detrimento do contribuinte: sindicatos de trabalhadores, movimentos de trabalhadores sem terra, federações empresariais, clubes de futebol, etc.

Um custo de transação adicional está na inércia das regras e na dificuldade para se alterar leis. A agenda do parlamento é congestionada e os projetos de lei devem esperar na fila a oportunidade para serem votados. Assim, um projeto de lei que revogue um privilégio injustificado de um grupo social pode simplesmente não ser aprovado porque o lobby dos beneficiários obtém sucesso em mantê-lo no final da fila.

Conclusões

As falhas de governo aqui apontadas não devem ser interpretadas como uma apologia ao estado mínimo, nem devem levar à falsa ideia de que as decisões de governo são sempre equivocadas ou enviesadas. É inconcebível, nas sociedades modernas, prescindir da ação estatal.

O que se pode concluir, após a constatação de que as “falhas de governo” existem e representam grandes distorções, custos e perda de bem-estar, é tentar minimizá-las. Isso pode ser feito de duas formas.

A primeira delas é sempre procurar questionar quais são os benefícios e custos de uma política estatal antes de implementá-la. A discussão acerca da oportunidade de se criar um novo programa público deve sempre buscar responder às seguintes questões: (a) qual é a falha de mercado que se está procurando resolver? (b) que falhas de governo podem vir a ser criadas pelo novo programa? (c) como minimizar as possíveis falhas de governo? (d) o risco de criar falhas de governo compensaa possível correção das falha de mercado que se pretende combater?

A segunda abordagem seria no sentido de reduzir o espaço para a ocorrência de falhas de governo, buscando-se:

  • transparência e prestação de contas pelas instituições públicas e imprensa livre;
  • entidades de controle externo (como o TCU, a Controladoria Geral da União ou o Conselho Nacional de Justiça) são instituições de supervisão cuja função é justamente induzir as instituições públicas a perseguir objetivos públicos, penalizando os agentes que buscam benefícios privados (sempre havendo o risco de que as próprias instituições de controle passem a ser utilizadas em favor dos interesses de quem as controla);
  • uma legislação que limite a prática do lobby;
  • regras eleitorais que reflitam o melhor possível as preferências do eleitor mediano e tornem as eleições baratas, evitando que os eleitos se tornem reféns de seus financiadores de campanha;
  • restrições ao gasto, à carga tributária, à dívida e ao déficit público, como as que estão estabelecidas na Lei de Responsabilidade Fiscal, reduzem o espaço de manobra para aqueles que querem usar o orçamento público como veículo para interesses privados;
  • organização das carreiras do serviço público com incentivos ao esforço e ao mérito, como promoções por bom desempenho, minimização da influência política e regras salariais baseadas na remuneração do setor privado;
  • manter a economia aberta à competição externa, o que cria um clima de competição e menor espaço para criação de privilégios legais. Em uma economia aberta e competitiva, o governo não pode sobretaxar as empresas (sob pena de reduzir sua competitividade) o que limita o tamanho do estado; o judiciário é induzido a ser rápido e eficiente (para solucionar controvérsias comerciais sem demora); e sobra pouco espaço para políticas de subsídios a setores privilegiados.

Para ler mais sobre o tema:

Arvate, P., Biderman, C. (2006) Vantagens e desvantagens da intervenção do governo na economia. In: Mendes, M. (Org.) Gasto público eficiente: 91 propostas para o desenvolvimento do Brasil. Instituto Fernand Braudel/Topbooks. São Paulo, p. 45-70.

Stiglitz, J. (1999) Economics of the public sector. W.W. Norton & Company, 3rd edition. Capítulos 1 e 4.


[1] Se ordenarmos a população da menor para a maior renda, a renda mediana será a daquele indivíduo que se encontra exatamente na metade da lista.

[2] Não foi possível confirmar a autoria.