Como coibir a prática do trabalho escravo no Brasil?

O art. 243 da Constituição Federal prevê que as glebas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas serão imediatamente expropriadas e destinadas ao assentamento de colonos, para o cultivo de produtos alimentícios e medicamentosos, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Há discussões no Congresso Nacional para alterar o dispositivo constitucional citado de forma a estender a pena de expropriação de terras para os casos em que for constada a exploração de trabalho escravo ou em situação análoga à escravidão (doravante denominados indistintamente trabalho escravo), sendo a respectiva área revertida para fins de reforma agrária.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o que caracteriza o trabalho escravo é a privação de liberdade a que os trabalhadores ficam submetidos. Embora não existam informações oficiais sobre o número de trabalhadores em condições de escravidão no Brasil, dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostraram que, em 2006, existiam 25 mil trabalhadores nessas condições. Os dados mais recentes apresentados pela CPT, relativos a 2010, mostram que as atividades que mais empregam esse tipo de mão de obra, considerando os casos denunciados e efetivamente fiscalizados, são a pecuária (59%), outras lavouras (16%) e carvoarias (11%). Naquele ano foram libertos 1.613 trabalhadores.

O crime por manter trabalho escravo está tipificado no Código Penal Brasileiro, em seu art. 149.  Conforme análise econômica do crime e das penas, sabe-se que seria eficiente do ponto de vista econômico que o Estado estabelecesse uma punição tal que, para o infrator, o prejuízo ex ante associado à punição seja superior aos benefícios que aufere por transgredir a lei.  Dentro dessa lógica, a pena aplicada deveria ser capaz de dissuadir o criminoso de praticar o crime. No entanto, a pena prevista para quem pratica crime de manutenção de trabalho escravo, conforme a legislação penal vigente, parece não estar sendo capaz de coibir tal prática, ou está coibindo em um grau menor do que o desejado pela sociedade.

Segundo o relatório Conflitos no Campo, da CPT, entre 1996 e 2003, menos de 10% dos empregadores envolvidos com o trabalho escravo no sul-sudeste do Pará foram denunciados por esse tipo de crime.  Baseando-se nos dados levantados pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho (MPT) e da CPT, observa-se que, em todos os estados da federação, nem todas as denúncias são efetivamente checadas. Além disso, a possibilidade de transmutação da pena (alteração da privação de liberdade por prestação de serviços ou doação de cestas básicas) acaba por encorajar os empregadores a explorarem o trabalho escravo frustrando a intenção do legislador em dissuadir o criminoso de praticar o delito. Em outras palavras, pode-se dizer que a transmutação da pena diminui sua força, fazendo com que o benefício (para o empregador) de manter trabalho escravo seja superior à punição esperada. Isso faz com que a punição não seja efetiva e não propicie a diminuição do delito.

Sob a perspectiva do crime racional, o criminoso calcula o valor esperado do crime, que é igual ao ganho menos a pena, multiplicado pela probabilidade de ser pego e condenado. O uso de mão-de-obra escrava está muito relacionado com os custos de transação: usualmente é praticado em locais distantes, onde é relativamente fácil para o empregador manter o empregado preso e onde é mais difícil chegar o Estado. Assim, é fácil entender porque atividades agropastoris (cultivo de soja, cana de açúcar e pecuária), extrativistas (mineração) e siderúrgicas (produção de ferro-gusa a partir da madeira queimada em carvoarias) valham-se costumeiramente de mão de obra escrava em seus processos produtivos.

Paralelamente às sanções penais cabíveis, o MTE procura combater o trabalho escravo com sanções administrativas como, por exemplo, a advertência, a multa, a suspensão e a interdição do estabelecimento. Essas medidas visam atingir economicamente quem incorre no crime de trabalho escravo, piorando a situação do autor do delito. O problema é que, além de nem todas as atividades que se valem de mão de obra escrava serem efetivamente fiscalizadas, o MTE só age quando motivado por denúncia.

Ainda que as denúncias sejam feitas, é inviável, quiçá impossível, para um órgão fiscalizador atender a todas as ocorrências que lhes são direcionadas. A título de exemplificação consideremos que, no caso de uma autuação do MTE por uso de mão de obra escrava, o empregador pague por todos os benefícios trabalhistas, como se os empregados fossem registrados. O valor é calculado sobre o salário prometido pelo aliciador, no momento do aliciamento. Assim, todos os direitos trabalhistas, tais como, salários atrasados, férias vencidas e proporcionais, décimo terceiro, aviso prévio e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço devem ser integralmente pagos. Além disso, como para o MTE a relação de emprego é presumida, ainda que não tenha sido formalizada, o trabalhador faz jus a três parcelas de seguro-desemprego.

Quando o empregador contrata trabalhadores escravos, atribui uma probabilidade estritamente positiva de nunca ser pego (se a probabilidade fosse nula, o empregador já contrataria obedecendo a legislação, pois saberia que, mais cedo ou mais tarde, teria de arcar com todos os custos trabalhistas). Por isso a contratação de trabalho escravo reduz os custos esperados do empregador. Custos mais baixos, por sua vez, estimulam a contratação de mão-de-obra. Quando a fiscalização do trabalho autua um empregador e lhe impõe o pagamento de todas as obrigações legais, o custo incorrido é maior do que o que incorreria se ele obedecesse à lei desde o início, pois, nesse caso, teria contratado menor volume de mão-de-obra. Essa punição administrativa, entretanto, não gera custos (ex ante) suficientemente elevados para todos os empregadores a ponto de desestimular a contratação da mão-de-obra escrava.

Por fim, na esfera cível, o Ministério Público do Trabalho (MPT) procura atuar de forma a compensar os danos morais sofridos pelos trabalhadores. Via de regra, as indenizações peticionadas aos juízes são elevadas com o claro objetivo de coibir o trabalho escravo. Não obstante, como se trata de uma ação civil, a ilegalidade cometida pelo empregador precisa ser comprovada por preponderância de evidências, posto que, pelo Princípio de Presunção de Inocência, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Como, costumeiramente, quem se vale da mão de obra escrava são pessoas com bons recursos financeiros, elas podem contar com uma excelente assessoria contábil e jurídica para suas fazendas e empresas, protelando as sentenças condenatórias ou até mesmo revertendo-as.

Além de todos esses problemas já relatados, o trabalho escravo gera ainda uma concorrência desleal, na medida em que as empresas que o usam podem praticar preços mais vantajosos no mercado, justamente por gastarem menos no emprego da mão de obra, auferindo lucros maiores que seus concorrentes que agem dentro da legalidade. O mercado de trabalho também é afetado uma vez que mais trabalhadores aliciados para o trabalho escravo significam menor oferta de trabalho nos demais setores da economia, encarecendo artificialmente a mão-de-obra legalmente empregada, o que vai de encontro à eficiência na economia.

Para que se crie um mecanismo eficaz de desestímulo ao trabalho escravo, é preciso definir qual seria o ponto ótimo de esforços de dissuasão. Seria aquele em que se minimizasse o custo social marginal e maximizasse o benefício social marginal. Sabemos que manter uma fiscalização intensa exige o empenho de muitos recursos, sobretudo financeiros, o que acaba onerando o orçamento público. A estrutura (organizacional, financeira e administrativa) exigida para combater o trabalho escravo no Brasil requer criar e equipar grupos de fiscalização móvel, arcar com todos os custos de operação do MTE, do MPT, ações conjuntas com a Polícia Federal, entre outros. Tudo isso implica empenhar recursos que já são escassos e, na verdade, poderiam ser mais bem empregados em outras áreas mais carentes.

Dessa forma, a aplicação de uma punição exemplar, com multas extremamente elevadas, pode compensar a baixa probabilidade de punição que observamos atualmente. A expropriação das terras onde ocorre o uso de trabalho escravo é perfeitamente cabível como forma de fazer o agente criminoso pagar pelos danos infligidos aos trabalhadores. Mas isso não pode ser aludido apenas para atender a requisitos de eficiência, pois dentro dessa lógica, o Estado deveria exaurir sua capacidade de cobrar multas (mais barato) antes de aplicar penas de aprisionamento (mais caras para o Estado). No caso de crimes contra a liberdade, como é o caso de reduzir alguém à condição análoga à de escravo, a multa deve ser aplicada sem prejuízo das medidas penais cabíveis, em vista do tratamento degradante aos quais os trabalhadores estão submetidos.

Diante do exposto, pode-se dizer que a previsão constitucional de expropriação da terra em casos de trabalho escravo poderia gerar incentivos para melhorar a situação atual. As sanções aplicadas (penais, cíveis e administrativas) não representam ameaças suficientes frente às vantagens pecuniárias advindas da exploração dos trabalhadores, não sendo assim capazes de dissuadir o crime. Nesse sentido, a previsão constitucional de expropriação da terra para quem emprega mão de obra escrava reduziria o beneficio esperado da prática delituosa.