Financiando a Recuperação : A Reforma da Lei de Falências

Por Jairo Saddi 

É da maior relevância o Projeto de Lei n. 4458/2020, que foi aprovado na Câmara dos Deputados e seguiu para o Senado Federal, e que trata da reforma da Lei de Falências, Lei n. 11.101/2005. Entre as matérias de inovação legislativa está a concessão de financiamento às empresas que estejam em recuperação judicial.

Já se disse que uma empresa em recuperação é exatamente igual a uma empresa em funcionamento normal: ela compra, necessita de estoques, tem o seu giro e também precisa de caixa. Portanto, para que o princípio maior da Lei seja cumprido e a empresa se recupere, são fundamentais a existência de capital de giro e a continuidade do crédito. Atualmente, o cenário é muito diferente. O que se sabe é que qualquer empresa em recuperação judicial é obrigada a pagar praticamente tudo antecipadamente, de maneira que seu crédito se evapora no momento em que ajuíza o pedido de recuperação. 

Há justificativas para tanto. Por ordem do concurso de credores, ainda que sejam pagamentos extraconcursais, a prática do mercado entende que há um risco maior de inadimplência. Daí, praticamente inexistir crédito para empresas em recuperação.

O PL, portanto, avança no sentido de alterar a ordem de pagamento dos créditos que hoje está nos Art. 83 e 84 da atual Lei, criando um novo artigo, o Art. 69, e especialmente uma autorização a este financiamento no Art. 69-B. Nesse sentido, a natureza extraconcursal do financiamento passa a ter prioridade absoluta no seu pagamento. Ou seja, é uma tentativa de suprir a possível falta de caixa e de liquidez para fazer frente a despesas correntes como pagamento de fornecedores, salários, despesas administrativas, produção etc. com uma linha específica de crédito.

Esse mecanismo é denominado Debtor-in-Possession Financing (DIP) e se originou nos Estados Unidos na década de 1960. Entre nós, a Lei n. 11.101/2005 não regulou o assunto, deixando para a jurisprudência a análise individual dos conflitos lá provocados.

O assunto não é novo. Paulo Fernando Campos Salles de Toledo já indicava há tempos que “mecanismos devem ser criados para que realmente se incentive a concessão de crédito”, pois “a dificuldade das recuperandas para acesso ao crédito (…) chega a impossibilitar a efetiva reorganização da empresa”. Finalmente, o projeto corrige e aperfeiçoa o mecanismo do DIP e promete novos tempos para empresas em recuperação.

O Art. 69-A e B do Projeto afirma que, durante a recuperação judicial, “o devedor poderá celebrar contratos de financiamento garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante, para financiar as suas atividades, as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos” e que “até a votação do plano de recuperação judicial, o devedor poderá apresentar nos autos proposta que conterá:  I – descrição detalhada dos termos da proposta de financiamento; II – indicação dos financiadores que apresentaram proposta de financiamento;  III – indicação do devedor destinatário do financiamento;  IV – descrição das garantias com indicação de bens e direitos a serem onerados ou alienados fiduciariamente;  V – indicação do processo competitivo a ser adotado no caso de eventual proposta concorrente de financiador interessado;  VI – descrição dos benefícios do financiamento para a coletividade de credores;  VII – minuta de edital com a indicação de data, hora e local de realização de assembleia geral de credores, se houver, para deliberar sobre a proposta de financiamento a ocorrer no prazo máximo de quarenta e cinco dias da data da apresentação da proposta; e  VIII – análise da viabilidade da qual conste a estrutura financeira do financiamento, o nível máximo de alavancagem permitido e os elementos para proteção dos credores não sujeitos à recuperação judicial”.

Trata-se, portanto, de proposta de financiamento sujeita à aprovação, já que não pode caber ao administrador judicial maior endividamento da empresa.

Não é por outra razão que o parágrafo 3o do mesmo artigo permite aos credores contrários à proposta de financiamento, que corresponderem a mais de 20% do valor total de créditos sujeitos à recuperação judicial, que manifestem ao administrador judicial o interesse na realização da Assembleia Geral de Credores indicada na proposta para autorizar a contratação. Quem autoriza o endividamento extraconcursal, portanto, é a Assembleia Geral de Credores.

Neste momento, o administrador judicial apresentará ao juiz um relatório das manifestações recebidas e requererá a convocação da Assembleia apenas na hipótese de as manifestações corresponderem a mais de 20% do valor total de créditos sujeitos à recuperação judicial. Na ausência de manifestações que superem aquele percentual ou comprovada a adesão dos credores à proposta do devedor, a proposta de financiamento será considerada aprovada. Sendo aprovada, o juiz autorizará a realização da operação. 

No entanto, mediante prévia autorização judicial, o financiador poderá adiantar ao devedor até 10% do valor do financiamento indicado na proposta antes da realização da Assembleia Geral de Credores que deliberará sobre a proposta de financiamento. Esse crédito permanecerá como extraconcursal e deverá ser pago com prioridade absoluta, sendo que, na hipótese de a proposta de financiamento ser rejeitada, o devedor deverá restituir imediatamente ao financiador a quantia efetivamente recebida sem incorrer em multas e encargos decorrentes da rescisão. 

Muitos têm criticado o mecanismo e mencionam um certo condão burocrático presente nos procedimentos e o risco da incerteza jurisdicional, já que qualquer decisão cabe agravo, segundo o processo judicial.

Maria Fabiana Sant’Ana e Thomaz Sant’Ana, em preciso artigo, afirmam que a proposta não endereça “problemas e questões comuns relacionados ao financiamento de empresas em recuperação judicial, como a compatibilização da prioridade do investidor com a expectativa de recebimento dos credores concursais, a eventual reforma da decisão que autoriza o DIP Financing pelo Tribunal, o controle do uso do valor mutuado para que ele seja realmente empregado no fomento da atividade empresária, dentre outros”. 

Sugerem que o texto poderia ter “se aproveitado de previsões contidas nas legislações estrangeiras mais modernas de Direito Falimentar a fim de tornar o procedimento de concessão do DIP Financing mais ágil e mais seguro, como a lei chilena, promulgada em 2014, que possibilita a obtenção de empréstimos no valor equivalente a até 20% (vinte por cento) do passivo concursal, bem como a oneração de bens em garantia deste empréstimo até o limite de 20% (vinte por cento) do ativo contabilizado sem necessidade de qualquer autorização, tornando a efetiva tomada do financiamento algo mais prático e célere, como são as relações comerciais atuais e o cotidiano das empresas, estejam elas em crise ou não”. Citam ainda o Codice della Crisi di Impresa e dell’Insolvenza italiano, que entrou em vigor em agosto de 2020, e que “possibilita que o juiz estabeleça, de início, um valor máximo para a obtenção do DIP Financing sem necessidade de autorização específica, deixando os interessados cientes dessa possibilidade desde o início do processo de insolvência”.

O fato é que há duas opções inteiramente distintas no processo e Maria Fabiana Sant’Ana e Thomaz Sant’Ana têm certa razão na crítica. Mas legislar implica em escolhas. Há caminhos de maior liberdade ao juiz e, em oposição, maior poder à Assembleia, sob a égide da máxima de que uma empresa em recuperação deve ser gerida em nome dos credores e apenas para satisfazê-los. 

Realmente, é difícil estabelecer procedimentos que fujam de fraudes e de más intenções, o que justifica o procedimento burocrático e a exigência da aprovação em assembleia.

No entanto, sob a ótica de maior certeza ao credor – e, não por outra razão, crédito é confiança – exatamente com tais preceitos burocráticos talvez se consiga ampliar a oferta de crédito para essas empresas.

Acho, portanto, que o projeto avança, ainda que de modo imperfeito, mas certamente melhor do que o regime da regra atual, vago e sem qualquer certeza de recebimento. E não há como não negar que sem crédito, a recuperação da empresa é praticamente impossível.

Jairo Saddi é advogado em São Paulo