Legalização de jogos de azar no Brasil e sua vulnerabilidade à lavagem de dinheiro: liberalização, regulamentação ou proibição

Por Mauro Salvo

1 – Introdução

O artigo propõe analisar as possíveis vulnerabilidades que a liberalização e regulamentação dos jogos de azar traria à economia brasileira, incluindo o risco de contágio a outros setores no que diz respeito à lavagem de dinheiro. O problema está na atividade econômica de exploração das casas de apostas e seu modus operandi, que traz riscos para a sociedade e para o sistema econômico que as hospeda. A decisão sobre permitir ou proibir as apostas carece de uma análise de seus custos e benefícios em administrar os riscos inerentes ao seu funcionamento. O principal argumento contrário à legalização dos jogos de azar é a sua frequente utilização por organizações criminosas como meio para lavagem de dinheiro. Uma casa de jogos pode facilmente ser utilizada com a finalidade de dar aparência de legitimidade para recursos de origem criminosa.

Em outras palavras, quanto mais canais disponíveis para a lavagem de dinheiro, maior será o incentivo para o crime, já que é por meio dela que os criminosos viabilizam o usufruto destes recursos e reduzem a probabilidade de serem descobertos e punidos pelos seus atos. O texto explora os argumentos dos defensores da legalização (lobistas), considerados simplistas pelos críticos, pois não levam em conta a vasta gama de custos e externalidades negativas. Baseado no exposto, a abordagem julgada mais adequada é a de seleção .

A legalização dos jogos de azar é reconhecida como causadora de alguns danos à sociedade, todavia a atividade apresentou uma forte onda de legalização nos últimos 25 anos, principalmente em países em desenvolvimento, decorrente da alta demanda pelo serviço e pela renda gerada para o governo através da tributação. Outros motivos são a atração de investimentos estrangeiros e o incremento do turismo e atividades correlatas. Portanto, a legalização é facilmente defendida por ter seus benefícios facilmente quantificáveis, enquanto os contra-argumentos são dificilmente mensuráveis e têm seus custos difusos na sociedade, dado seu caráter subterrâneo (FATF Report[1], março, 2009)

Levando-se em conta as características econômicas, geográficas e culturais do Brasil seria recomendável especial atenção na regulamentação da atividade. A experiência brasileira em passado recente, e muitos casos ao redor do mundo, demonstram que a preocupação com a lavagem de dinheiro nesse setor de atividade não é mero preconceito ou apenas uma possibilidade teórica. Mesmo sendo regulamentado, manter a sua operação constitui um risco elevado. Assim, fica claro que o motivo para defender a não legalização dos jogos de azar é a sua facilitação ao crime, direta ou indiretamente.

2 – Base teórica

As pessoas respondem por incentivos, ou seja, tomam decisões comparando custos e benefícios, assim seu comportamento pode mudar quando esta relação se altera. Este pensamento pode ser utilizado para qualquer ação humana, inclusive para ações criminosas, visto tratar-se de atividades humanas. Gary Becker (1968), com o artigo seminal “Crime and punishment: an economic approach”, impôs um marco à abordagem sobre os determinantes da criminalidade ao desenvolver um modelo formal em que o ato criminoso decorreria de uma avaliação racional em torno dos benefícios e custos esperados nele envolvidos, comparados aos resultados da alocação do seu tempo no mercado de trabalho legal. Basicamente, a decisão de cometer ou não o crime resultaria de um processo de maximização de utilidade esperada, em que o indivíduo confrontaria, de um lado, os potenciais ganhos resultantes da ação criminosa, o valor da punição e as probabilidades de detenção e aprisionamento associadas e, de outro, o custo de oportunidade de cometer crimes, traduzido pelo salário alternativo no mercado de trabalho.

Na perspectiva da teoria econômica do crime, em sua esmagadora maioria, o criminoso é uma pessoa normal que pondera e decide dentro de uma determinada estrutura de incentivos ou condicionantes. Portanto, o evento “crime” é visto como uma decisão onde são ponderados os benefícios e os custos, e, também, como uma troca intertemporal, entre o benefício imediato e um custo provável no futuro (punição). Os benefícios consistem nos ganhos monetários e psicológicos proporcionados pelo crime. Por sua vez, os custos englobam a probabilidade de o indivíduo que comete o crime ser preso, as perdas de renda futura decorrentes do tempo em que estiver detido, os custos diretos do ato criminoso (tempo de planejamento, instrumentos etc.) e os custos associados à reprovação moral do grupo e da comunidade em que vive. Uma notação possível desta equação seria: Crime = b – p * c, onde b é o benefício do crime, p é a probabilidade de prisão e c os custos medidos pela perda de renda durante o tempo de prisão mais os custos diretos e morais.

3 – Lavagem de dinheiro através dos jogos de azar

Agentes que tenham obtido recursos de forma ilícita têm a necessidade de que, pelo menos, parte destes recursos seja incorporado ao mercado formal de modo a dificultar o rastreamento de sua origem criminosa e assim possa ser utilizado livremente por seus detentores. A este procedimento dá-se o nome de “lavagem de dinheiro”.

A lavagem de dinheiro pode ocorrer em qualquer setor de atividade. Todavia, há aqueles mais vulneráveis. Para que o lavador de dinheiro tenha êxito ele costuma buscar setores com características que facilitem alcançar seu objetivo. Em termos genéricos, os lavadores de dinheiro procuram setores com falhas no trinômio regulação-monitoramento/fiscalização-punição. Mais especificamente, os setores que oferecem as melhores condições para que criminosos reciclem os ativos obtidos ilegalmente apresentarão algumas (ou todas) características como: a) algum grau de informalidade; b) os preços apresentam forte oscilação (como característica inerente ao setor); c) regulamentação inexistente ou frágil; d) fiscalização inexistente ou frágil; e) difícil avaliação quanto ao preço e qualidade dos bens negociados (parâmetros subjetivos); f) difícil rastreamento; g) raras punições.

Os métodos de reciclagem de ativos e suas tipologias, em qualquer local, são fortemente influenciados pela economia, pelos mercados financeiros, e pelas políticas adotadas para combatê-los. Consequentemente, os métodos variam de lugar para lugar e ao longo do tempo.

Em relatório sobre a efetividade dos programas de PLD/CFT (Prevenção à Lavagem de Dinheiro e Combate ao Financimento do Terrorismo) o FMI apresenta as três chaves para a avaliação de risco – ameaça, vulnerabilidade e conseqüências – e suas aplicações à Lavagem de Dinheiro (LD) e Financimento do Terrorismo (. As normas internacionais de gestão de risco definem o risco como uma função da probabilidade de ocorrência e a conseqüência de eventos de risco, sendo a primeira uma função da coexistência de ameaça e vulnerabilidade. Em outras palavras, os eventos de risco ocorrem quando uma ameaça explora a vulnerabilidade. Formalmente, R, um nível de risco de LD de uma jurisdição, pode ser representado como: R = f [( T ), ( V )] x C, em que T representa “ameaça”, V representa “vulnerabilidade”, e C representa “consequência”. Assim, o nível de risco pode ser atenuado através da redução do tamanho das ameaças, vulnerabilidades, ou suas conseqüências. (FMI, 2011 pg. 64)

Quando se trata de LD, uma “ameaça” é em grande parte relacionada com a natureza e a escala da demanda potencial por LD, ou seja, o conjunto de ativos ilegalmente adquiridos que precisam ser lavados. Assim, a avaliação de risco de LD implica compreensão e geração de indicadores para os produtos do crime (POC) que são gerados ou trazidos para a jurisdição. (FMI, 2011 pg. 65)

A “Vulnerabilidade” na avaliação de risco LD ou FT engloba os produtos, serviços, canais de distribuição, bases de clientes, instituições, sistemas, estruturas e jurisdições (incluindo deficiências nos sistemas, controles ou medidas) que permitem LD ou abuso FT. Os indicadores de vulnerabilidade são numerosos, mas eles podem ser agrupados em categorias, tais como localização geográfica, serviços e produtos financeiros, os níveis de informalidade em vários setores, deficiências nos sistemas de PLD/CFT e da adequação dos controles de PLD/CFT existentes, os níveis gerais de corrupção, a eficácia das agências de aplicação da lei e do sistema de justiça criminal, e outras características da jurisdição que poderia facilitar sucesso da LD ou do FT. (FMI 2011 pg. 65-6)

As “Consequências” relacionam os resultados com a ocorrência dos eventos de risco. As consequências podem se relacionar com o custo, dano causado, ou com a significância dos resultados. De um ponto de vista, os processos de LD e FT geram dois tipos de consequências: em primeiro lugar, aqueles associados com a lavagem em si, e, em segundo lugar, os associados com o uso dos ativos, depois de terem sido lavadas com sucesso. (FMI, 2011 pg. 66)

De acordo com o Relatório do GAFI (Grupo de Ação Financeira, 2009), há uma ampla gama de fatores a incluir numa avaliação de risco para o setor de cassinos e dos jogos de azar: ambiente jurídico e regulamentar; as características da economia, bem como do próprio setor; estrutura de propriedade, integridade dos controles internos e governança corporativa das instituições de cassino/jogos, de intermediários e de negócios associados (promotores de junke, agentes, equipamentos de jogos, provedores de serviços financeiros); estrutura de propriedade ; tipos de produtos e serviços oferecidos e clientes atendidos; atividades criminosas e produtos do crime gerados domesticamente, bem como gerados no exterior, mas lavados a nível nacional.; serviços financeiros oferecidos pelas instituições de cassino/jogos e por seus intermediários. (Relatório do GAFI, 2009, p. 22)

Antes de permitir o seu funcionamento, a avaliação objetiva compreender:

– O escopo do setor de cassino: número, tipo, localização, propriedade, perfil de risco etc.

– Como os casinos são usados como intermediários financeiros.

– Casos de aplicação da lei/inteligência de como os casinos são usados para lavagem de dinheiro ou estão associados com delitos subjacentes (fraude, agiotagem etc).

– Tendências criminais ligadas aos cassinos. (Relatório do GAFI, 2009, página 23)

Os cassinos são, por definição, instituições não financeiras. Como parte de sua operação, os casinos oferecem apostas para entretenimento, mas também podem realizar várias atividades financeiras que são semelhantes às instituições financeiras, o que os coloca vulneráveis ao risco de lavagem de dinheiro. A maioria, se não todos, os cassinos realizam atividades financeiras semelhantes às instituições financeiras, incluindo: aceitar depósitos em conta; realizar troca de dinheiro; realizar transferências de dinheiro; realizar câmbio de moeda estrangeira; serviços de depósito de valores (ativos físicos); saques de cartões de débito, resgate de cheques; cofres; etc. Em muitos casos, estes serviços financeiros estão disponíveis 24 horas por dia. (Relatório do GAFI, 2009, p.25 e p. 36)

A função essencial de todos os reguladores de cassino é assegurar que o jogo seja conduzido honestamente ao aprovar as regras dos jogos e exigir dos operadores que forneçam um alto padrão de sistemas de vigilância e segurança. Isso garante a confiança do público no produto do jogo, minimiza as oportunidades de atividade criminosa e fornece certeza de fluxos de receita ao governo. A exploração de cassinos por criminosos ou via sua influência parece ser motivada tanto para lavagem de dinheiro, quanto para a recreação e em alguns casos para complementar seus empreendimentos criminosos fora do cassino. (Relatório do GAFI, 2009, p.26-7)

Todos os tipos de consequências têm direta ou indiretamente impactos financeiros, micro ou macroeconômicos, tanto no setor público quanto no privado. Portanto, é dever de todos colaborarem para a prevenção e combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, visto que seus efeitos causam danos por toda a sociedade. Cabe salientar que as políticas de prevenção à lavagem de dinheiro existem não como um fim em si mesmo, mas como auxílio no combate à criminalidade. Tornar a equação do crime desfavorável aos criminosos, aumentando seus custos e a probabilidade de pegá-los, é a melhor maneira de combatê-los.

4 – O caso brasileiro: liberalização, regulamentação ou proibição?

De acordo com matéria publicada no sítio da ABRABINCS (http://www.abrabincs.com/#!blank/izdul) o tema há muito é controverso e mostra que os sucessivos governos demonstravam insegurança, mesmo quando favoráveis à legalização. A proibição de jogos de azar foi instituída no Governo de Eurico Gaspar Dutra através de Decreto-Lei n°. 9.215/46 que, em seu art. 1º, determinava a restauração, em todo o território nacional, da vigência do art. 50 e seus parágrafos da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei n°. 3.688/41 do Governo de Getúlio Vargas).

Em 1993 a Lei n° 8.672 com a finalidade de angariar recursos para serem utilizados no fomento da atividade desportiva, permitiu a exploração de sorteios da modalidade denominada “Bingo”. Nova redação foi dada pela Lei n° 9.615/98, revogando o instrumento anterior. Todavia, apesar da modernização das leis, os problemas continuaram.

Na própria exposição de motivos da Medida Provisória 168/2004 que proibia todas as modalidades de bingo e jogos “caça-níqueis” no Brasil – jogos também considerados de “azar” – constava como argumento para a proibição que “em torno desses estabelecimentos formou-se um círculo de sonegação fiscal, lavagem de dinheiro e corrupção, a ponto de ameaçar a estabilidade institucional e gerando até mesmo reflexos nos investimentos econômicos”.

No Congresso, desde que o bingo foi proibido, deputados discutem propostas sobre o assunto. De 2004 até hoje, mais de dez projetos de lei foram criados em volta do tema, alguns a favor e outros contra a regulamentação dos jogos. Em 2011, todos eles foram unificados no PL 2.944/04, de autoria do deputado federal Valdemar Costa Neto (PR-SP), que determina a regulamentação dos jogos de bingo e das máquinas caça-níqueis no país. (BOECHAT, B. 2014)

Toda atividade econômica passa pelo “filtro” da liberalização, regulamentação ou proibição. O “filtro” que determinará se a atividade será totalmente livre, ou seja, se as relações entre ofertantes e demandantes não sofrerão qualquer intervenção estatal. Se não for o caso de liberalização total a atividade pode ser autorizada desde que respeite determinadas condições, isto é, regras para seu funcionamento que estabelecerá certos limites. No outro extremo à liberdade total está a sua proibição. O que determinará o destino da atividade econômica é o seu potencial de causar danos às partes envolvidas ou a terceiros. Como destacam Ragazzo e Ribeiro (2012):

Atividades que acreditamos gerar impactos negativos, que superem os possíveis benefícios (se houver), tendem a ser desestimuladas por meio de proibição. Isso se aplica a qualquer atividade que gere risco. Isso abre espaço para a implementação de uma cultura regulatória que leve a sério uma devida e criteriosa análise dos potenciais custos e benefícios associados a cada possível linha regulatória, para avaliar cada alternativa antes de se chegar a uma conclusão. (RAGAZZO e RIBEIRO, 2012, p. 629-630)

Em 2014 começou a tramitar no Senado Projeto de Lei n° 186 sobre o tema. De acordo com o projeto a justificativa para a legalização dos jogos pode ser sumarizada da seguinte forma.

“Em termos econômicos, além da geração (manutenção) de empregos e da maior circulação (formal) de riquezas, destacamos que a descriminalização dos jogos de azar terá como consequência o aumento das receitas públicas devido à tributação incidente sobre a atividade. Ademais, a proposição prevê a instituição, por lei complementar, de contribuição social que incidirá especificamente sobre os jogos de azar. Trata-se de criar nova fonte de custeio destinado a manter e expandir a seguridade social por meio da chamada competência residual tributária da União. Desse modo, a saúde, a previdência e a assistência social poderão contar com mais recursos, oriundos da nova atividade agora legalizada. Isso significa que, além de todos os tributos que já incidirão normalmente sobre os jogos de azar, haverá uma nova contribuição sobre a atividade, específica e exclusiva, e cuja arrecadação beneficiará um grande número de cidadãos brasileiros, em todo o País.” (PLS 186)

Arrecadação a qualquer custo? Melhor não.

O principal argumento para a legalização é o potencial de arrecadação de tributos, todavia existem muitas outras atividades que podem ser fomentadas com vistas ao aumento de arrecadação. É muito importante destacar que para fins de lavagem de dinheiro os criminosos estarão mais propensos a pagar tributos, pois a prioridade é reduzir a probabilidade de que as autoridades descubram a origem ilícita dos recursos. Os lavadores de dinheiro sabem que pagar impostos tende a acalmar os órgãos fiscalizadores e entendem que os tributos fazem parte inerente ao processo de reciclagem de ativos.

Os valores propagandeados na mídia como estimativas dos ganhos em termos de investimentos, arrecadação e geração de empregos aparentemente estão superestimados. Na realidade, há indícios de que se trata apenas de meros “chutes”. Em suas manifestações são citadas estimativas que variam entre R$ 20 bilhões e R$ 200 bilhões. Os defensores da legalização, quando indagados, esquivam-se e não apresentam estudos ou estimativas com o mínimo de metodologia. Oportunidades e tempo não faltaram, tendo em vista vários projetos de lei protocolados nas últimas décadas. Cabe também ponderar que juntamente com novas receitas virão novas despesas, que incluiriam, por exemplo, segurança, fiscalização e saúde pública, dentre outras, dependendo de quais modalidades de jogos serão regularizadas e como isso será feito. Não é perfeitamente claro se o impacto final no orçamento público vai ser positivo. (RAGAZZO e RIBEIRO, 2012, p. 628).

Não aposte na religião

O argumento de que os opositores à legalização dos casinos e jogos de azar no Brasil assim se posicionam por motivos religiosos não procede. Este argumento vem sendo repetido por décadas e todas as menções referem-se apenas a uma narrativa fantasiosa ou baseadas em boato datado da década de 1940. Porém o que temos de fato é que após seu banimento em 1946, nos curtos lapsos de tempo em que foi permitido algum tipo de jogo de azar, como por exemplo os bingos, sua relação com atividades criminosas foi instantânea. Isso levou a nova proibição muitas décadas após a não comprovada tese do tal “motivo religioso”. Ademais, se a religiosidade dos brasileiros fosse o motivo para a restrição dos jogos no Brasil, as loterias estatais não teriam tantos apostadores (que inclusive pedem aos deuses para serem agraciados com o prêmio). Aliás, o brasileiro não aposta, faz uma “fezinha”.

Quando se diz que o Brasil é o único país não muçulmano a proibir jogos de azar comete-se um grande equívoco. O relatório do GAFI, já citado, aponta numa lista não exaustiva de mais de 20 países onde os jogos não são permitidos, dentre eles, há vários não muçulmanos distribuídos pelos 5 continentes.

Cassinos lavam dinheiro pelo mundo afora

Mesmo dentre os países nos quais é permitido jogos de azar há que se diferenciar alguns aspectos, tais como:

  1. Permitido sem ser regulamentado
  2. Permitido com regulamentação, porém não menciona políticas de PLD-CFT
  3. Permitido com regulamentação que inclui políticas PLD-CFT
  4. Proibido

Outro aspecto importante é que há casos de lavagem de dinheiro através de casinos em muitos países (talvez todos) onde o jogo é permitido e regulamentado. Vejamos alguns casos.

Recentemente uma empresa alemã (Wirecard) lavou dinheiro para a máfia italiana num cassino em Malta, conforme matéria publicada no Financial Times[3].

Matéria publicada pela Bloomberg aborda caso de lavagem de dinheiro em Cingapura por meio de uma grande rede internacional de Cassinos, Las Vegas Sands Corp. O artigo também relata tratar-se de um contumaz reincidente[4].

O maior operador de cassinos na Austrália, The Crown, foi relacionado ao crime organizado, lavagem de dinheiro e concessão de vistos para grandes apostadores, fato que demonstrou falhas na supervisão e regulação daquele país, conforme notícias veiculadas[5].

Na França, o governo também esteve reticente em autorizar novos cassinos em Paris após a multiplicação de casos ligados a criminalidade, de acordo com o Le Parisien[6].

No Canadá uma série de reportagens investigativas da CBC News vem denunciando há mais de uma década suspeitas de lavagem de dinheiro nos cassinos[7].

Mesmo na China, onde os jogos de azar são proibidos (não consta que a China seja islâmica) pode-se encontrar fraudes para direcionar recursos para cassinos situados em outros países para fins de lavagem de dinheiro[8].

No Reino Unido reguladores dos jogos de azar estão aumentando as multas dos operadores que falham nas políticas de prevenção à lavagem dinheiro, incluindo grandes bookmakers como a Ladbrokes Coral, por exemplo. O dinheiro das multas está sendo direcionados para amenizar os danos causados pelos jogos[9]

Na Itália não há operação ou investigação contra as máfias que não contém pelo menos um capítulo dedicado à interferência criminosa na indústria de jogos e apostas. O jornal italiano Corriere dela Sera citou algumas das operações nas quais jogos de azar e máfia estavam envolvidas: Rischiatutto, Black Monkey, Clean Game, Criminal Games, Elite 12 Argo, Last Bet, Game Over.

Os EUA também não poderiam ficar de fora dos países aqui mencionados, tendo em vista que sempre são lembrados como exemplo de país onde o jogo é liberado e regulamentado. Por isso, é importante mostrar algum contraponto. Matéria publicada no Review Journal mostra caso no qual o FBI – Federal Bureau of Investigation indiciou 21 pessoas por lavagem de dinheiro num esquema que tinha como epicentro cassinos de Las Vegas[10].

A indústria de jogos dos EUA é um dos setores de negócios mais fortemente regulamentados e controlados em todo o mundo. Além das regulamentações estaduais de jogos abrangentes e rigorosas, a maioria das operações de jogos dos EUA também está sujeita aos requisitos federais de prevenção à lavagem de dinheiro (PLD). Desde 1985, os cassinos comerciais norteamericanos foram definidos como “instituições financeiras” pela Lei do Segredo Bancário (BSA – Bank Secret Act). De forma mais ampla, a BSA também exige que os cassinos formulem e implementem programas de prevenção à lavagem de dinheiro baseados em risco. (AGA-AML Best Practices Compliance 2019-2020, pp. 1-2)

Também corroboram com os argumentos pró-restrição, seja proibição ou liberalização regulamentada, da atividade de casinos no Brasil as estatísticas das unidades de inteligência financeira – UIF de vários países. Estes números mostram quantidade elevada e crescente de operações suspeitas reportadas na atividade de jogos de azar. No quadro abaixo foram selecionados 3 países de economias avançadas nos quais o jogo é permitido e regulamentado e o setor de jogos é obrigado a comunicar operações suspeitas à sua unidade de inteligência financeira para fins de combate à lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo. Até mesmo nestes países o número de operações consideradas suspeitas e foram comunicadas pelos agentes do mercado à Unidade de Inteligência Financeira de cada país tem sido crescentes ano após ano.

Quantidade de Comunicações de operações suspeitas nos países selecionados

Turismo pode ser fomentado sem cassinos

Outro argumento em defesa da legalização é o fomento ao turismo com a possibilidade de atração de investimentos estrangeiros e consequente geração de empregos. Embora tenha fundamento deve-se considerar que o setor de turismo pode ser estimulado por muitas outras medidas, por exemplo, investimentos em infraestrutura que possuem efeito multiplicador muito maior, maior capacidade de atrair investimentos e de estímulo a outros setores da economia, maiores benefícios a toda a sociedade e geração de mais postos de trabalho. Como já mencionado na introdução deste trabalho, muitas atividades que movimentam grandes somas não são legalizadas por serem consideradas nocivas, mesmo que resultassem em elevação expressiva da arrecadação e geração de empregos. Ademais, a atividade econômica “jogos de azar” não é essencial e, portanto, a ausência de sua oferta no território nacional nada afeta o bem-estar social dos brasileiros.

Livre iniciativa sim, criminalidade não

O argumento de que o Brasil estaria impedindo a livre iniciativa cai por terra quando comparamos com Israel onde os jogos de azar também são proibidos. O Brasil ocupa a 144ª posição (entre 180 países) no índice de liberdade econômica (https://www.heritage.org/index/ranking) de 2020, situando-se no grupo de países majoritariamente não-livres, enquanto Israel ocupa a 26ª posição no grupo de países majoritariamente livres. Ou seja, mesmo num país com muita liberdade econômica a exploração de jogos de azar é vista como atividade cujo custo-benefício é negativo, ou no mínimo duvidoso, dados seus riscos inerentes. Com este exemplo também evapora o argumento de que somente países muçulmanos proíbem jogos de azar.

Já temos jogos, para que mais?

O argumento de que já existem outras loterias também deve ser relativizado, visto que são estatais. Outrossim, pode-se contra argumentar dizendo que por já existir jogos legalizados não seriam necessários outros tipos para atender à demanda. Vale ressaltar que novas loterias têm sido criadas e nem por isso a atividade ilegal foi reduzida, isso leva a crer que não há garantia de que a legalização atraísse todos para a economia formal. O fato de as loterias estarem sob controle estatal no Brasil, no que tange à lavagem de dinheiro, acrescenta uma barreira a mais visto que seria necessário haver a participação de servidores públicos em conluio com os criminosos. Ou seja, aumentaria os custos, mais um crime e o risco de ser pego. Não impede, mas dificulta.

Lucros privados, danos socializados

Outros dois argumentos é de que na maioria dos países os jogos são legalizados e que em outras atividades legalizadas há sonegação e lavagem de dinheiro. Nestes dois pontos convergimos para a questão chave do artigo, qual seja, o custo-benefício. Talvez as externalidades negativas sejam toleradas devido ao elevado benefício gerado para aquela economia em comparação aos custos. É uma hipótese. Outras hipóteses são o interesse de governos nas atividades criminosas, o grande poder de grupos de interesses, pode também não ter sido feita uma análise criteriosa dos possíveis danos à sociedade, entre outras. Se nem estimativas minimamente confiáveis dos ganhos seus defensores conseguiram apresentar em décadas, o que dizer de estimativas dos custos?

Por fim, o argumento de que produtos como fumo e bebidas alcoólicas são legalizados e arrecadam um enorme volume de recursos introduzem no debate um tema de extrema importância quanto ao impacto regulatório que é o dano causado e quem é a vítima. Nos casos de fumo e bebidas alcoólicas a regulamentação evoluiu no sentido de limitar o dano ao próprio agente – fumante ou bebedor. Além disso, nos casos em que o agente causar danos a terceiros, a vítima é facilmente identificada e pode ser indenizada. Quando se trata da lavagem de dinheiro através dos jogos de azar a vítima não é identificada, pois é a sociedade como um todo. Em situações como essa o recomendado é que o ônus da prevenção recaia sobre o fornecedor do produto ou serviço que está sendo utilizado para tal finalidade. RAGAZZO e RIBEIRO (2012, p. 631-3) categorizam os custos associados aos jogos em quatro grupos: crimes, doenças, falência pessoal e aspectos produtivos.

Seleção Adversa e regulamentação excludente

Um possível problema quando a regulamentação aumenta excessivamente os custos de sua observância é inibir o ingresso no setor de agentes honestos, promovendo uma seleção adversa. Ou seja, só são atraídos para o setor os agentes que desejam utilizar a atividade para encobertar ganhos ilícitos. Sempre que observamos a substituição dos agentes ou produtos ótimos pelos de menor qualidade em razão de uma falha de mercado (é o que ocorre com a lavagem de dinheiro) estamos diante da seleção adversa, usualmente causada pela assimetria de informação (AKERLOF, 1970).

Caso o Congresso Brasileiro opte por legalizar os jogos de azar novamente, o passo seguinte seria definir o grau de regulamentação que será aplicada ao setor. Seria importante a regulamentação considerar as características de cada jogo, tendo em mente seus eventuais problemas particulares e suas intensidades para elaborar um conjunto de normas específicas e eficazes na mitigação de possíveis danos, seja para os apostadores, seja para o funcionamento da economia, seja quanto os impactos criminais etc. A regulação é necessária para se corrigir os efeitos negativos decorrentes de falhas de mercado, como no caso de assimetria de informação entre o ofertante do jogo e o jogador.

Legalização como “Cavalo de Tróia”

A ideia de ver a legalização dos jogos de azar como “cavalo de Troia” remete à possibilidade de posteriormente à aprovação da liberalização abrirem-se brechas para a permissão de procedimentos mais arriscados, assim como incrementar o risco de contágio. O contágio ocorreria quando as casas de jogos fossem utilizadas para reciclar recursos de origem criminosa, causando um choque nos setores da cadeia produtiva.

A partir do momento em que se permite a inserção e manutenção de um fluxo de recursos originários do crime em setores produtivos legítimos torna-se mais difícil combater o crime antecedente. Além disso, o possível choque positivo inicial sobre emprego e renda causado pelo investimento em busca da ocultação de sua origem torna medidas de combate ao crime impopulares, visto que podem gerar desemprego e redução da atividade nos setores envolvidos quando repreendidos. Um dos setores mais preocupantes é o setor financeiro devido ao seu papel como alocador de recursos e inerente ramificação por toda a economia.

5- Considerações Finais

No artigo defendeu-se uma regulamentação bastante pormenorizada e específica para o setor, a fim de minimizar os riscos e reduzir sua vulnerabilidade. Todavia, não se pode negligenciar que uma regulamentação extremamente rígida normalmente eleva os custos de sua observância tanto para os agentes privados que operarão o negócio, quanto para os agentes públicos que fiscalizarão e punirão os desvios de conduta, quando houver. Há a possibilidade de que os custos da adoção de medidas de aderência inviabilizem alguns investimentos privados ou que os custos para o Erário anulem os benefícios do incremento da atividade econômica.

É importante esclarecer que caso o Brasil opte por permitir os jogos de azar novamente em seu território, especial atenção deve ser dada às vulnerabilidades do setor de ser utilizado por organizações criminosas para fins de lavagem de dinheiro e suas consequências socioeconômicas.

Referências

AKERLOF, George A. The Market for “Lemons”: Quality Uncertainty and the Market Mechanism. The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, 1970.

BECKER, G. Crime and punishment: an economic approach. Journal of Political Economy. Vol. 76, 1968, pp. 175-209.

FATF/GAFI. Vulnerabilities of Casinos and Gaming Sector (March 2009). Available at http://www.fatf-gafi.org/media/fatf/documents/reports/Vulnerabilities%20of%20Casinos%20and%20Gaming%20Sector.pdf access in May 2016

IMF. Anti-Money Laundering and Combating the Financing of Terrorism (PLD/CFT) – Report on the review of the effectiveness of the program. Work Paper. May 2011.

RAGAZZO, C. E. J. e RIBEIRO, G. S. S. de A. O Dobro ou Nada: a regulação de jogos de azar. Revista Direito GV, São Paulo, B(2) p. 625-650, jul-dez 2012.

[1] Recomendo a leitura do relatório do FATF (Financial Action Task Force) sobre a vulnerabilidades do setor de jogos de azar no qual são expostos com detalhes diversos casos, tipologias e estruturas normativas em diferentes países.

[2] Junket é um grupo de jogadores que viajam para locais onde há cassinos, em outras palavras, excursão com a finalidade de apostas em casas de jogos.

[3] https://www.ft.com/content/b3eb9a37-ed8a-4218-9064-685b181740f0

[4] https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-06-04/adelson-s-singapore-casino-probed-over-money-laundering-controls

[5] https://theconversation.com/the-crown-allegations-show-the-repeated-failures-of-our-gambling-regulators-121173

[6] https://www.leparisien.fr/faits-divers/paris-renoue-avec-les-jeux-d-argent-25-04-2018-7683810.php

[7] https://www.cbc.ca/news/canada/british-columbia/organized-crime-money-laundering-vancouver-casinos-1.4158902

[8] https://www.scmp.com/abacus/culture/article/3100107/e-commerce-schemes-involving-empty-boxes-qr-codes-and-fake-tracking

[9] . https://www.caseware.com/alessa/blog/uk-gambling-watchdog-casino-fines/

[10] https://www.reviewjournal.com/crime/courts/21-charged-in-casino-based-money-laundering-scheme/ acesso em 12 de outubro de 2020.

Mauro Salvo é doutor em Economia e analista do Banco Central do Brasil