Regulação pelas Agências Infranacionais

Por Marcelo Nunes de Oliveira*

Quando se ouve falar a respeito de agências reguladoras no Brasil, é normal vir à mente as diversas instituições que foram criadas no país a partir da década de 1990, como resultado do processo de redução do papel do Estado Brasileiro enquanto empresário, passando para um papel de Estado Regulador de determinados setores econômicos que passaram por processos de privatização e desestatização de empresas.

Existem atualmente onze Agências Reguladoras em nível federal em sentido estrito, conforme enunciado do art. 2º da Lei nº 13.848/2019[1], embora seu parágrafo único disponha que outras autarquias em regime especial possam ser caracterizadas como tal. Além disso, outras instituições do Estado Brasileiro também possuem competências de regulação setorial, sendo o Banco Central do Brasil – BCB talvez o caso mais notório.

A mais antiga delas é a ANATEL, criada por meio da Lei nº 9.472/1997 e instalada em novembro do mesmo ano. A ANEEL, embora tenha sido instituída por lei anterior (nº 9.427/1996), só iniciou suas atividades em dezembro de 1997, pouco mais de um mês após a ANATEL. Curiosamente, a caçula do grupo, ANM, criada em 2017 por meio da Lei nº 13.575, é a sucessora da instituição que pode ser considerada a primeira com competências regulatórias no país: o Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, criado em 1934.

Todas essas agências atuam em setores cuja competência pela exploração ou para legislar recaem sobre a União, nos termos dos artigos 21 e 22 da Constituição Federal.

Outra característica dessas instituições é a especialização: todas possuem competências sobre um mercado específico, ou, quando muito, setores fortemente relacionados, caso, por exemplo, da ANTT (transporte de passageiros, transporte de cargas, rodovias e ferrovias) e, mais recentemente, da ANA (recursos hídricos e saneamento básico).

Uma outra face da regulação nacional, um pouco menos conhecida mas que possui grande importância para a economia nacional, é o das agências reguladoras infranacionais, que podem ser estaduais, municipais ou intermunicipais. Difícil precisar com exatidão a quantidade de agências infranacionais. Para se ter uma noção, a ANA contabiliza em seu sítio eletrônico 83 agências infranacionais que atuam em saneamento básico, além de outros setores. A Associação Brasileira de Agências de Regulação – ABAR, por sua vez, possui 57 filiadas infranacionais.

Essas agências atuam em setores cuja competência não são da União ou, em alguns casos, são por ela delegados. Grande parte dessas autarquias atua nos setores de transporte de passageiros intermunicipal (dentro das fronteiras de um estado) e dos serviços locais de gás canalizado, ambos de competência estadual nos termos do art. 25 da Constituição Federal[2]. Além desses setores, a regulação dos serviços de saneamento básico também é, majoritariamente, exercida pelas agências estaduais, embora a titularidade do serviço seja municipal – a maioria dos prestadores de serviços de saneamento no Brasil ainda são empresas estatais estaduais, realidade em intensa transformação desde a aprovação do novo marco legal do saneamento básico – Lei nº 14.026/2020. Também é relativamente comum o exercício da regulação de serviços de energia elétrica por agências estaduais, cuja competência originária é da ANEEL, que, por meio de convênios de cooperação, delega parte das atribuições, sobretudo fiscalização, para agências estaduais. Atualmente, dez reguladores estaduais possuem convênios do tipo com a ANEEL, a Agência Goiana de Regulação, Controle e Fiscalização de Serviços Públicos – AGR dentre eles.

Além desses, outros serviços cujas competências sejam concorrentes  com a União ou não vedada aos entes infranacionais também são objeto de regulação por parte dessas instituições, como recursos hídricos, rodovias estaduais, serviços de mobilidade urbana e demais atividades que possam ser objeto de delegação ou parceria ao setor privado.

Além do objeto, outra característica que distingue boa parte dos reguladores infranacionais em relação aos pares federais é o caráter não exclusivo, ou multissetorial, de boa parte dessas agências. A tabela abaixo traz alguns exemplos de agências estaduais e os setores por elas regulados:

AgênciaEnte FederativoSetores regulados
ARESCSCSaneamento Básico, Recursos Hídricos, Recursos Minerais, Exploração e Distribuição de Gás Natural Canalizado e Energia Elétrica.
ARSALALEnergia elétrica, Gás canalizado, Transporte e Saneamento Básico.
ARSESPSPEnergia Elétrica; Saneamento Básico e Gás canalizado.
ARTESPSPTransportes Ferroviários, Metroviários e Rodovias.
AGRGOBens e Serviços Delegados; Energia Elétrica; Saneamento Básico; Transportes e Gás canalizado.
AGIRMunicípios do Vale do Itajaí – SCSaneamento Básico e Transporte Público.
Fonte: Associação Brasileira de Agências de Regulação – ABAR. https://abar.org.br/agencias-associadas-a-abar/.

Nos últimos dois anos essas agências têm enfrentado desafios e atraído atenção em razão da aprovação de dois novos marcos regulatórios de setores por elas regulados: saneamento, já mencionado, e de gás natural – Lei nº 14.134/2021.

O primeiro, aprovado em 2020, propõe resolver o problema do saneamento básico no Brasil até 2033, estipulando metas e definindo penalidades para os prestadores que não alcançarem a universalização dos serviços[3]. Dentre as atribuições conferidas aos reguladores infranacionais pelo novo marco, destacam-se: (i) atestar a capacidade econômico-financeira dos atuais prestadores contratados sem licitação (caso da maioria das estatais estaduais de saneamento), condição para que os contratos vigentes permaneçam regulares com vistas ao alcance das metas; (ii) regulamentar e fiscalizar metas intermediárias anuais de ampliação dos serviços, com vistas à universalização em 2033; e (iii) regulamentar normativos em consonância com regras gerais a serem editadas pela ANA. Além disso, o novo marco do saneamento impõe a necessidade da chamada “regionalização nos estados” (divisão em grupos de municípios para fins de ganhos de escala e escopo) e licitação para os locais com contratos vencidos ou a vencer, abrindo a possibilidade de múltiplos prestadores passarem a atuar na área geográfica regulada, conferindo maior complexidade à regulação do setor.

Quanto ao mercado de gás canalizado, o novo marco tem o objetivo de alterar profundamente a estrutura do setor, até hoje altamente concentrado e verticalizado em toda sua cadeia em razão da atuação histórica da Petrobrás, especialmente nas etapas de exploração, produção, processamento e transporte da molécula de gás. A nova legislação prevê a desverticalização do setor, reduzindo a participação da estatal na cadeia produtiva com o objetivo de fomentar a competição. Embora o novo marco não adentre especificamente na questão da distribuição local, há divergências interpretativas sobre um possível avanço da Lei Federal sobre questões de competência dos estados, como a classificação de gasodutos e o fornecimento direto entre gasodutos de transporte a distribuidores de GNL e GNC.

Tais inovações têm trazido desafios aos reguladores infranacionais e a necessidade de atualização dos normativos locais ao novo modelo do setor como um todo. Alguns estados, como Paraíba, Maranhão, Ceará, Piauí, Pernambuco e Amazonas já aprovaram novos marcos estaduais. Contudo, há críticas em razão de possível sobreposição às definições do novo marco federal sobre o conceito de gasoduto, além de criação de regras que dificultam a transição de consumidores para o mercado livre – medida que tem por objetivo aumentar a competição na venda da molécula mas potencialmente reduz o poder de mercado das concessionárias estaduais, monopolistas na oferta para o mercado cativo.

Por fim, mas não menos relevante, questões de governança que tanto afligem reguladores federais não poderiam deixar de afetar as agências infranacionais, possivelmente até em maior grau. Por se tratarem de agências menores e com regulados muitas vezes pertencentes ao mesmo ente (muito comum nos setores de gás canalizado e saneamento) o risco de captura e de confusão de papéis entre Estado enquanto Regulador e Estado enquanto Regulado não é desprezível. Nessa seara, ressalta mencionar importante iniciativa da ABAR que estipulou em seu Estatuto, art. 6º, que é condição para filiação como associada a Agência que possua garantia de mandato fixo para seus dirigentes estipulado em Lei.

Como visto, não são poucos nem simples os desafios da regulação infranacional. Atuar em setores tão sensíveis e essenciais para o bem estar da população, como é o saneamento básico, e ter que entregar resultados à população em um ambiente de menor disponibilidade de recursos do que em nível federal e com distintos níveis de maturidade institucional, em que não raro o papel da regulação como política de Estado, e não de Governo, é pouco compreendido. Soma-se a esse fato a necessária capacidade de transitar entre diferentes setores, alguns com pouco ou nenhuma conexão material entre si a não ser o fato de serem regulados – como transporte de passageiros e energia elétrica, tornando ainda mais complexo o caminho para o avanço de temas como Análise de Impacto Regulatório (AIR), Análise de Resultado Regulatório (ARR) e de regulação de incentivos. Por outro lado, todos esses desafios se transformam, a depender do frame de quem analisa, em um campo fértil à implementação de melhorias regulatórias e transformações com enorme potencial de aumento do bem-estar da população. Depende de conhecimento, vontade e disposição.

[1] Art. 2º Consideram-se agências reguladoras, para os fins desta Lei e para os fins da Lei nº 9.986, de 18 de julho de 2000:

I – a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel);

II – a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP);

III – a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel);

IV – a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa);

V – a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS);

VI – a Agência Nacional de Águas (ANA);

VII – a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq);

VIII – a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT);

IX – a Agência Nacional do Cinema (Ancine);

X – a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac);

XI – a Agência Nacional de Mineração (ANM)

[2] A competência para exploração dos serviços locais de gás natural canalizado está expressa no § 2º do art.25, enquanto no transporte intermunicipal ela é uma decorrência do § 1º do caput do mesmo artigo, que reserva aos estados as competências não vedadas pelo texto Constitucional.

[3] Para fins do novo marco legal, a universalização é alcançada com 99% da população municipal atendida por água potável e 90% com coleta e tratamento de esgotos até 2033.

Marcelo Nunes de Oliveira é presidente da Agência Goiana de Regulação, Controle e Fiscalização de Serviços Públicos – AGR. Servidor efetivo da carreira de Gestor, do Ministério da Economia. Graduado em Administração ela UNB, especialista em Defesa da Concorrência pela FGV e mestre em Economia pelo IDP.