Inflação e corrupção

Por Luiz Alberto Machado*

 “Não há meio mais seguro e mais sutil de subverter a base da sociedade do que corromper sua moeda – processo que empenha todas as forças ocultas da economia na sua destruição, de modo tal que só uma pessoa em cada milhão consegue diagnosticar.”

John Maynard Keynes

Alinho-me àqueles que consideram o Plano Real o grande divisor de águas da economia brasileira. A conquista da estabilidade monetária pôs fim a um perverso ciclo de planos de estabilização fracassados que foram responsáveis pela nossa permanência em prolongado atoleiro. Adotados com o objetivo de acabar com a inflação crônica e elevada vigente na década de 1980 e início da de 1990, tais planos agravaram as tradicionais consequências negativas da inflação – corrosão do valor da moeda, elevação dos preços, perda aquisitiva dos salários – adicionando a elas a instabilidade jurídica decorrente da ruptura de contratos juridicamente perfeitos, a instabilidade financeira decorrente da troca frequente da moeda e das ilusões de rentabilidade, e a ampliação do campo para a corrupção generalizada graças, entre outras coisas, à manipulação dos orçamentos públicos transformados em peças de ficção contábil.

Num artigo de 1992 do Prof. Eduardo Giannetti da Fonseca, há um parágrafo que retrata bem o que era viver num país com taxas de inflação como essas: “A convivência com a inflação é uma escola de oportunismo, imediatismo e corrupção. A ausência de moeda estável encurta os horizontes do processo decisório, torna os ganhos e perdas aleatórios, acirra os conflitos pseudodistributivos, premia o aproveitador, desestimula a atividade produtiva, promove o individualismo selvagem, inviabiliza o cálculo econômico racional e torna os orçamentos do setor público peças de ficção contábil”. 

É evidente que há uma diferença acentuada entre os níveis da inflação daquela época e o da atual, que chegou a 10,06% em 2021, conforme divulgação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nos últimos dez anos, apenas em dois deles, 2015 e 2021, a inflação anual foi superior a 10%, como se observa no gráfico 1.

Gráfico 1 – A inflação nos últimos 10 anos: IPCA 2011-2021

Para enfatizar bem a diferença entre os dois contextos, vale lembrar, tanto para os que viveram nos primeiros anos da década de 1990 e, especialmente, para os que não viveram nessa época, a que patamar havia chegado a inflação no Brasil e como estávamos defasados em relação a nossos vizinhos latino-americanos que, àquela altura, já tinham obtido sucesso no esforço de debelar a inflação. Quase todos esses países, a exemplo do Brasil na década de 1980, conviveram com a combinação de estagnação prolongada, inflação crônica e endividamento elevado, no que se convencionou chamar de década perdida.

Como se vê no gráfico 2, a inflação anual do Brasil em 1992 foi de 1.178%, contrastando enormemente com a inflação dos outros países da região.

Gráfico 2 – A inflação na América Latina em 1992[1]

Em 1993, o ano que antecede a adoção do Plano Real, a situação foi ainda pior, com a inflação atingindo 2.567%, enquanto a média dos países da América Latina foi de 22% (gráfico 3). 

Gráfico 3  – A inflação na América Latina em 1993

Diz o ditado que “uma imagem vale mais que mil palavras”. As imagens desses três gráficos constituem, a meu juízo, razões mais do que suficientes para perceber que a inflação atual, mesmo estando bem acima da meta estabelecida pelo Banco Central, está num patamar completamente diferente daquele verificado antes da estabilidade propiciada pelo Plano Real.

Porém, considerando que: (i) não conseguimos eliminar por completo alguns resquícios de cultura inflacionária; (II) já nos deparamos aqui e acolá com notícias dando conta de reivindicações de aumentos de salários e/ou de preços em setores isolados; (iii) tudo indica que continuaremos em 2022 com uma inflação anual superior à meta fixada pelo Banco Central; (iv) estamos em ano eleitoral, nos quais interesses eleitoreiros costumam levar a gastos públicos superiores aos recomendáveis; e (v) assistimos a um crescente desmanche de avanços recentes das instituições anticorrupção,  achei por bem lembrar a perigosa relação entre inflação e corrupção a fim de conscientizar a todos sobre a necessidade de cortarmos o mal pela raiz, fazendo todos os esforços para que a inflação não se alastre e suba de patamar, ameaçando as conquistas decorrentes da estabilização monetária que nos colocaram, depois de muitos anos de inflação crônica e elevada, num novo padrão de convivência civilizada, sem os riscos que a falta de um padrão monetário estável significam para a corrosão do acordo moral de que dependem tanto a manutenção da ordem democrática como o funcionamento do mercado.

Recorro novamente a um alerta de Eduardo Giannetti da Fonseca: “A inflação destrói a transparência da gestão de verbas públicas, mina a confiança da sociedade no Estado, provoca a deterioração da moralidade fiscal e deturpa irremediavelmente as relações de mercado”.

Porém, para confirmar a hipótese de que ainda não estamos vivendo num clima de descontrole generalizado como costuma ocorrer quando todos os agentes econômicos – empresários, trabalhadores, donas de casa etc. – alteram seu comportamento normal, atirando-se num clima alucinado de jogatina, encerro reproduzindo um trecho bastante ilustrativo de Lionel Robbins, que, a exemplo de John Maynard Keynes, foi um dos maiores economistas do século XX: “A honestidade pública e privada tendem a se deteriorar na atmosfera de cassino engendrada pela inflação alta. A inflação, tal qual nós a conhecemos, através da história, corrompe e distorce toda a base da sociedade. Eu não afirmo que o mundo chegará ao seu fim se nós degenerarmos até a posição da América Latina. Mas o que digo é que uma inflação da ordem de grandeza que estamos presenciando (15% ao ano) gradualmente acarreta uma mudança radical de atitude – uma mudança geral e deplorável de atitude em toda a sociedade”.

Referências

FONSECA, Eduardo Giannetti da. Ética e inflação. Em O Estado de S. Paulo, 14 de julho de 1992, p. 2.

_______________ As consequências morais da inflação. Em As partes & o todo. São Paulo: Siciliano, 1995, pp. 185-190.

KEYNES, John M. As consequências econômicas da paz. Prefácio de Marcelo de Paiva Abreu; tradução de Sérgio Bath. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. (Clássicos IPRI; v. 3).

ROBBINS, Lionel. Against inflation (1979). Em FONSECA, Eduardo Giannetti da. Ética e inflação. Braudel Papers, n° 1. São Paulo: Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, 1993, p. 6.

 * Luiz Alberto Machado é economista pela Universidade Mackenzie (1977), mestre em Criatividade e Inovação pela Universidade Fernando Pessoa (Portugal, 2012), assessor da Fundação Espaço Democrático e membro do Instituto Fernand Braudel.

Baseado no artigo publicado no blog de Fausto Macedo do jornal O Estado de S. Paulo, em 15 de abril de 2022.

[1] A fonte dos gráficos 2 e 3 é a FGV.

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