Restrições à Integração Vertical na Lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC)

Restrições à Integração Vertical na Lei do Serviço de Acesso Condicionado (SeAC)

* Camila Sanson

Introdução

Os serviços de comunicação são previstos na Constituição, de forma que a análise regulatória deve levar em conta os limites e condições impostos por ela nos arts 220 a 224, de seu capítulo da Comunicação Social (Capítulo V). Já no âmbito infraconstitucional existem diversas leis e decretos que regulam os serviços de radiodifusão, além daqueles prestados no regime privado, com recepção condicionada à contratação remunerada por assinantes.
Sobre a TV paga ou Serviço de Acesso Condicionado (SeAC) há sua definição no inciso XIII do art. 2º da Lei 12.485/2011 como “serviço de telecomunicações de interesse coletivo prestado no regime privado, cuja recepção é condicionada à contratação remunerada por assinantes e destinado à distribuição de conteúdos audiovisuais na forma de pacotes, de canais nas modalidades avulsa de programação e avulsa de conteúdo programado e de canais de distribuição obrigatória, por meio de tecnologias, processos, meios eletrônicos e protocolos de comunicação quaisquer”.
Até a publicação da Lei do SeAC (12.485/2011), a legislação de TV paga apresentava regras por vezes conflitantes de acordo com a tecnologia aplicada. Tal diploma promoveu a uniformização da legislação sobre TV paga independentemente da tecnologia adotada.
Aquele diploma legal traz ainda algumas definições legais para os entes integrantes da cadeia de valor (Figura 01). As produtoras produzem os conteúdos, as programadoras licenciam esse conteúdo e os organizam na forma de canais. As empacotadoras, por sua vez, estruturam tais canais na forma de pacotes. Esses pacotes são contratados pelas distribuidoras que têm relação direta com o consumidor final, fornecem os serviços de Tv paga e entregam (através da transmissão) os pacotes contratados.
Quanto às questões concorrenciais, a Lei 12.485/2011 menciona expressamente condutas previstas como anticompetitivas como o preço discriminatório, previsto na lei de concorrência 12.529/2011. Além disso, o artigo 7º da Lei do SeAC veda essas condutas quando são objetivados lucros e prejuízos artificialmente construídos que busquem dissimular os reais resultados econômicos ou financeiros obtidos, em quaisquer das atividades de comunicação audiovisual de acesso condicionado.
Também em termos concorrenciais, destaca-se, a existência de dispositivos que criam obstáculos à integração vertical e separam as atividades de produção e programação de conteúdo das atividades de distribuição e empacotamento. Tais restrições, objeto do presente artigo, separam, assim, as camadas de produção e de infraestrutura (Figura 01).
Figura 1: Cadeia de valor segundo a Lei 12.485/2011

Figura 1: Cadeia de valor segundo a Lei 12.485/2011

Fonte:
O presente artigo visa apresentar as especificidades da Lei 12.485/2011, as restrições previstas neste diploma em relação à verticalização das empresas atuantes no SeAC, os possíveis efeitos concorrenciais de tais obstáculos e principalmente se a avaliação desses efeitos deve ser feita de maneira geral (através da legislação) ou caso a caso.

Referencial Teórico

A discussão a seguir não tem o objetivo de exaurir os trabalhos que abordam as restrições à verticalização em um mercado. A finalidade é demonstrar como diversos autores abordam as restrições à verticalização na cadeia de valor no mercado audiovisual.
Sobre o mercado de Tv paga, há estudos que avaliam os efeitos da verticalização da cadeia no audiovisual. Pode-se destacar estudos específicos sobre o mercado de Tv que entendem que a integração vertical seria benéfica. analisou os efeitos de integrações verticais no mercado de Tv a cabo dos Estados Unidos e concluiu que os efeitos nocivos da integração decorrentes da tentativa de fechamento de mercado são compensados pelos efeitos de ganhos de eficiência da verticalização.
Também pode-se destacar a publicação de que realizaram uma extensa revisão de literatura sobre os efeitos de integrações verticais nos mercados de programação e distribuição. Foram destacados efeitos positivos e negativos e concluiu-se que os resultados não necessariamente apontem que distribuidores não presentes nas empresas verticalizadas paguem automaticamente preços mais altos pela programação, nem sistematicamente tenham acesso à programação negado.
Destacando os benefícios, ao analisar o mercado audiovisual de uma forma geral, destacou que a integração vertical traria benefícios para os consumidores (menores preços, variedade de conteúdo, facilidade de acesso, melhor experiência do cliente) e benefícios para as empresas do setor, alguns deles trariam um impacto positivo no bem-estar dos consumidores e outros contribuiriam para a sustentabilidade geral do setor. Seriam eles menores custos de transação, economias de escala e escopo e eliminação da dupla margem.
Especificamente no mercado brasileiro, concluiu ainda que as restrições impostas no artigo 5º da Lei SeAC, são anticoncorrenciais ou prejudiciais à proteção do setor audiovisual local e devem ser removidas para evitar sufocar a concorrência, diminuindo o bem-estar dos consumidores. Também é destacado que essas restrições seriam um potencial fator para o declínio no número de assinantes do SeAC que vem ocorrendo nos últimos anos.
Ainda sobre o mercado audiovisual brasileiro, destacaram que a avaliação dos efeitos concorrenciais de uma deve ser feita caso a caso, pois há evidências de fortes eficiências associadas ao modelo de negócio, aqui potencializadas pelo uso de tecnologia e de dados para alterar a experiência do consumidor de serviços de conteúdo.
⦁ Restrições à Integração Vertical
A distinção em camadas apontada acima é um ponto importante da Lei do SeAC pois reforça a existência de obstáculos à propriedade cruzada entre os segmentos de produção, programação, empacotamento e distribuição, presente nos artigos 5º e 6º do diploma legal.
Devido à disposição legal, uma empresa que produz conteúdo (produtoras, radio difusoras ou programadoras) não pode ser proprietária de mais de 50% de empresas de telecomunicações de interesse coletivo (pertencente à camada de infraestrutura), sendo possível que as empresas que produzem conteúdo prestem serviços de telecomunicações.
Existem também obstáculos para que empresas prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo possuam mais de 30% do controle ou titularidade do capital total e votante de empresas de radiodifusão, produtoras e programadoras. Com isso, essas empresas atuantes na camada de conteúdo não podem ter participação superior a 30% do capital total ou votante pertencentes a empresas de telecomunicações. O § 1º do art. 5º da Lei pode assim ser esquematizado:

Figura 2: Obstáculos à propriedade privada

Fonte:
O § 2º do art. 5º da Lei dispõe de uma exceção à regra que cria obstáculos à propriedade cruzada. Assim, é possível que as empresas da camada de conteúdo, com sede no Brasil, prestem serviço de telecomunicações exclusivamente para concessionárias e permissionárias dos serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens ou transportar conteúdo audiovisual das produtoras ou programadoras com sede no Brasil para entrega às distribuidoras, dentro se sua própria rede. Esta questão ocorre devido à necessidade de se utilizar a rede de transporte de sinais de telecomunicações de forma eficiente. Já o § 3º do art. 5º salienta que a separação da camada de infraestrutura e conteúdo só é aplicável às empresas atuantes no Brasil.
O art. 6º da Lei veda a possibilidade de acesso ao conteúdo pelas empresas que prestem serviço de telecomunicação de interesse coletivo. Assim tais empresas não podem comprar direitos de eventos e contratar artistas com finalidade de criar exclusividade ou vedação de uso, exceto para obras publicitárias.

Implicações concorrenciais das restrições presentes na Lei 12.485/2011

As restrições à integração vertical presentes nos arts 5º e 6º da Lei 12.485/2011 tem como fundamento a possibilidade de condutas anticoncorrenciais decorrentes de um determinado tipo de integração vertical na cadeia de valor da TV paga. .
A integração vertical implica custos não desprezíveis para uma firma. Diante desses custos, a verticalização só se justificaria se dessa estratégia resultarem benefícios superiores. Dentre esses benefícios, estariam reduzir custos de transação, assegurar o fornecimento de um insumo, corrigir falhas de mercado e absorver externalidades, evitar efeitos de intervenções governamentais, explorar ou criar poder de mercado e contrapor-se a outra firma com poder de mercado.
No caso da verticalização na Tv paga brasileira há mais efeitos positivos da verticalização do que negativos , assim, ela poderia ser justificada e não restringida, conforme prevê a Lei do SeAC. Tais implicações podem assim ser resumidas:

Tabela 1: Resumo dos benefícios e custos aos consumidores da integração vertical no SeAC

BenefíciosCustos
Diminuição dos preços e dos custos para os consumidores através da produção própria de conteúdo e menores custos de transaçãoPossível exclusão de concorrentes e coordenação de preços
Maior investimento e qualidade dos produtos oferecidos ao consumidor devido à maior capacidade de investimento em produtos de riscoPossível aumento da barreira à entrada
Maior diversidade de produtosPossível exclusão de modelos de negócio
Exploração das economias de escala e escopo

Adaptado de
Desse conjunto de motivos favoráveis também se pode verificar os benefícios derivados da integração vertical: redução de custos, melhor eficiência alocativa, redução de incertezas, eliminação do problema da dupla marginalização, possibilidade de ganhos derivados de economias de escopo. Tais ganhos, além de auferidos pelas firmas, podem, dependendo das condições de mercado, serem usufruídos também pelos consumidores.
Os obstáculos às integrações verticais impedem a realização de economias de escala e de escopo em favor dos provedores de distribuição de conteúdo, ao contrário da dinâmica setorial do processo de verticalização das camadas que vem ocorrendo em âmbito internacional. Essa regulação (restritiva) em camadas também não permitiu a atualização dos regulamentos da Anatel e da Ancine às mudanças relacionadas ao cenário de convergência dos últimos anos e também, possivelmente, comprometeu a inovação que os atores do mercado de telecomunicações poderiam ter promovido por meio das camadas de conteúdo e infraestrutura favoravelmente ao usuário final, em especial no âmbito de plataformas multilaterais.
Limitando-se as estratégias de atuação das empresas à lei atual potencialmente desestimula os investimentos em um segmento econômico intensivo em capital e em inovação, no qual as mudanças tecnológicas e novas opções de produtos e serviços surgem com frequência Tal limitação de investimentos pode restringir a qualidade, reduzir a competição no mercado e diminuir a qualidade e diversidade de produtos e serviços ofertados aos consumidores.
Potenciais eficiências econômicas podem ser impedidas por restrições à integração vertical feitas sem a análise caso a caso. Um efeito disso é que impedir o setorde se adaptar aos novos contextos tecnológicos e às novas demandas. Inclusive, o relatório recomendou a remoção “das restrições legais à integração da cadeia de valor da TV por assinatura e à propriedade cruzada entre serviços de telecomunicações e serviços de TV por assinatura tanto para prestadores de serviços domésticos quanto internacionais”.

Conclusão

O presente artigo apresentou as peculiaridades da Lei 12.485/2011 e as restrições que ela apresenta em relação à verticalização das empresas atuantes no SeAC. Por fim, foram demonstrados os possíveis efeitos concorrenciais de tais restrições.
Concluiu-se que as restrições verticais podem produzir efeitos econômicos positivos ou negativos, e, ainda, que tais efeitos líquidos de que impliquem integração vertical sejam eles quais forem, estes devem ser avaliados caso a caso.
As restrições à verticalização presentes na Lei 12.485/2011, a princípio, impossibilitam que as empresas do setor usufruam dos possíveis benefícios que podem ser obtidos legitimamente da estratégia de integração vertical como os verificados nos estudos acima citados. E essas restrições ocorrem por uma suposição de que as empresas praticariam condutas abusivas. Nesse caso, antes da avaliação pela autoridade concorrencial (o Cade), já se pressupõe que há um alto risco de condutas abusivas serem postas em prática pelas empresas. Assim, ignora-se o critério adotado pelas autoridades concorrenciais de se avaliar os efeitos líquidos decorrentes de uma integração vertical, presumindo-se que eles serão negativos.
Quanto aos possíveis efeitos anticompetitivos da verticalização, o aumento da concorrência do setor (com a entrada das plataformas de VoD) vem reduzindo as barreiras à entrada e a concentração no mercado. Além disso, o argumento de instalação essencial do cabo perdeu a importância devido à evolução de redes mais modernas de comunicações. Há inclusive argumentos de que a restrição à integração vertical nunca provocou efeitos reais sobre a concentração no setor.
Portanto, as restrições impostas pela regulação pressupondo que os efeitos concorrenciais serão negativos deveriam ser revistas por não serem benéficas para a concorrência. Isso decorre do fato de a restrição já pressupor o prejuízo concorrencial e pelas peculiaridades e pela realidade do mercado de serviço de acesso condicionado no Brasil.

* Camila Sanson

Atua no Departamento de Estudos Econômicos no Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestre em Economia, Regulação e Concorrência dos Serviços Públicos – Universitat de Barcelona (2018). É técnica em Regulação da Atividade Cinematográfica e Audiovisual.