A importância da Regulação de Slots Aeroportuários para o Acesso ao Mercado

A importância da Regulação de Slots Aeroportuários para o Acesso ao Mercado

Por Raquel Irber de Azevedo Lopes* e Rodrigo Neves Martins**

Recentemente, a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) emitiu novos regulamentos a respeito da coordenação de aeroportos e das regras de alocação e monitoramento do uso da infraestrutura aeroportuária (Resolução nº 682/2022 e Decisões nº 533, 534, 535, 536 e 537, todas de 07 de junho de 2022), considerando-se, nesses casos, aqueles aeroportos com escassez de infraestrutura. As novas regras levaram em conta diretrizes internacionais estabelecidos pela própria Indústria e, também, aspectos de interesse social dispostos na Política Nacional de Aviação Civil.

Para os casos de aeroportos com escassez de infraestrutura aeroportuária, a ANAC pode emitir um documento que declara o aeroporto como “aeroporto coordenado”, de forma que se possam aplicar os critérios e regras de alocação e monitoramento do uso da infraestrutura aeroportuária, em conformidade com os parâmetros de coordenação.

Os horários de pouso e decolagem alocados para uma empresa aérea em aeroportos coordenados são denominados “slots”, e dão o direito ao uso de toda a infraestrutura necessária para a realização de uma operação aérea de pouso ou decolagem, considerando os principais componentes aeroportuários: pista, pátio e terminal. Isto equivale dizer que a Empresa de Transporte Aéreo somente poderá utilizar aquela infraestrutura aeroportuária caso seja detentora de um slot. Isso, por sua vez, caracteriza o slot como um recurso essencial, sem o qual um operador aéreo se torna incapaz de realizar suas atividades naquele mercado. 

A principal diretriz internacional a respeito de acesso a slots aeroportuários é o Worldwide Airport Slot Guidelines (WASG), que nasceu num contexto histórico da necessidade de empresas aéreas coordenarem entre si o uso de infraestruturas aeroportuárias de maneira harmônica. A necessidade de coordenação foi importante pois, com grande número de operadores aéreos fazendo uso de um mesmo aeroporto, atrasos de um operador seriam capazes de afetar a operação das demais empresas que utilizariam aquela infraestrutura no mesmo momento ou em sequência. Com o passar do tempo e esgotamento da capacidade aeroportuária, este grupo acabou por dispor, também, de diretrizescom melhores práticas para concessão ou manutenção de direitos de uso sobre slots aeroportuários. Entre outros aspectos, os mais relevantes são os critérios conhecidos como “use-it-or-lose-it”, ou seja, faça uso da infraestrutura ou perca direito a ela, e “grandfatherrights”, o equivalente a um direito de uso histórico de quem já fazia uso daquela infraestrutura aeroportuária. 

No Brasil, a adoção de critérios baseados no WASG, que ocorreu a partir de 2014, permitiu que a infraestrutura aeroportuária brasileira fosse distribuída observando um calendário de planejamento de voos uniforme às práticas mundiais, com regras amplamente conhecidas, trazendo ganhos em especial às operações em aeroportos internacionais. Foram adotados também os mesmos critérios acima, de direito histórico (“grandfatherrights”) e de uso (“use-it-or-lose-it”), este último considerando, ainda, a necessidade de pontualidade na realização de voos, o que trouxe avanços quanto àqualidade dos voos operados no Brasil.  A precedência dos direitos históricos, bem como consolidações do próprio mercado, no entanto, trouxeram efeitos adversos, levando àpiora dos índices de concentração de mercado, em especial no aeroporto de Congonhas (SBSP), onde a infraestrutura já se encontrava saturada no momento da primeira distribuição. 

A saturação da infraestrutura aeroportuária no aeroporto de Congonhas (SBSP) é histórica e diversas regras foram emanadas pela autoridade de aviação, ao longo do tempo, para tentar disciplinar acesso e concorrência. Destas, destaca-se a Portaria 569 GC-5, emitida em setembro de 2000, que limitava o controle de slots no aeroporto em 37% por operador aéreo. Esta medida seria revogada um ano depois, permanecendo válidas as demais disposições daquele regulamento. 

A distribuição de slots, no entanto, passou a configurar um problema concorrencial. Como dito por Alessandro Oliveira, “conceder slots passou a ser o mesmo que conceder direitos de exercício de poder de mercado”. Considerando regras de prevalência histórica que beneficiavam empresas aéreas incumbentes, as regras baseadas em diretrizes internacionais pouco poderiam fazer para alterar a situação de concentração e barreira a acesso ao mercado já saturado. 

Em 2019, a saída de mercado da Oceanair Linhas Aéreas S/A (Oceanair), importante player no mercado de aviação doméstico, levou à deterioração das condições concorrenciais, especialmente no aeroporto de Congonhas (SBSP), sob a iminência de nova distribuição de slots com efeitos concorrenciais adversos, à luz da regulação vigente à época. Isso se dava, pois, ao distribuir os slots disponíveis a uma razão de 50% para incumbentes e 50% para novos entrantes, conforme preconizado internacionalmente e nos parâmetros previstosnos normativos à época (Resolução da ANAC nº 338/2014 e Decisão da ANAC nº 107/2018), considerando que o número de operadores que se qualificam como novos entrantes é maior do que o de incumbentes, matematicamente resultaria em ainda mais concentração. Neste contexto, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) oficiou à ANAC, externando sua preocupação a respeito dos possíveis resultados de uma nova distribuição de slots nos moldes daquela regra. 
A ANAC realizou, então, uma tomada de subsídios acerca da redistribuição dos slots da Oceanair e procedeu a uma alocação temporária desses slots, utilizando-se novos parâmetros de coordenação (Decisão da ANAC nº 109/2019), além de colocar em Agenda Regulatória a revisão da Resolução nº 338/2014 para que futuramente houvesse uma nova redistribuição. Iniciou-se, então, uma revisão das regras de coordenação, tomando por objetivo a melhoria da contestabilidade de mercado e da eficiência e fazendo, assim, com que a resolução que disciplina a distribuição de slots funcione também como ferramenta de política pública. Adicionalmente, foram observados objetivos em relação aos custos regulatórios, estabilidade regulatória e segurança jurídica. 

É importante enxergar a regulamentação da norma de slots quanto ao seu papel para o atingimento de políticas públicas, e não apenas um mero disciplinador de acesso à infraestrutura aeroportuária. Para este último, as práticas internacionais emanadas pela própria Indústria, que por óbvio consideram seus objetivos produtivos e de geração de valor, tendem a ser suficientes. Quando considerado um problema particular e estabelecido, como por exemplo, o aeroporto de Congonhas (saturação total da capacidade aeroportuária e altíssimo nível de concentração de mercado), há a necessidade inconteste de estabelecer uma regra local que difere das regras gerais aplicadas aos outros aeroportos coordenados, de forma a alcançar os objetivos regulatórios. 

O problema regulatório definido, conforme a Análise de Impacto Regulatório é de “empresas possivelmente exercendo poder de mercado devido a falhas na promoção da concorrência derivadas de incentivos perversos na regulação de acesso a infraestruturas saturadas”.  De fato, a regulação vigente seria capaz de distribuir slots, quando disponíveis, sob critérios transparentes e uniformes, compatíveis com práticas internacionais e considerando a eficiência de uso dos recursos, mas sem, no entanto, considerar aspectos relevantes como a eficiência econômica e facilitação da saída de mercado. 

Aqui cabe diferenciar que a eficiência de uso da infraestrutura alcançada pelas normas preconizadas pelo WASG diz respeito ao maior número de operações realizadas (utilização do slot), sem considerar, por exemplo, tamanho de aeronave, ocupação média, quantidades de passageiros transportados ou tipo de operação. 

Neste sentido, a estratégia regulatória escolhida permitiria, então, que aeroportos que não tenham situações que ensejem a adoção de regras diferenciadas sejam atendidos pelas regras gerais estabelecidas na resolução, sendo estas o mais próximo possível das práticas preconizadas internacionalmente. Mas, caso justificado, aeroportos com problemas específicos poderão receber, como regra local, critérios diferenciados de acesso. As regras locais, então, seriam estabelecidas por meio da Declaração de Aeroporto Coordenado, aprovadas pela ANAC por meio de Decisão da Diretoria Colegiada, caso a caso. 
Neste primeiro momento, o instituto da regra local foi estabelecido somente para o Aeroporto de Congonhas (SBSP), dispondo de critério mínimo de qualificação para operação naquela infraestrutura, de forma a priorizar empresas de transporte aéreo com maior capacidade competitiva e que, de fato, possuem interesse real de ampliar suas operações naquele mercado. Além disso, foi estabelecida a possibilidade de que um concorrente com participação relevante no mercado doméstico, mas que ainda possui pouca quantidade de slots no aeroporto, receba maior prioridade na alocação de slots provenientes do banco de slots, até um limite que o permita estabelecer concorrência efetiva nas principais rotas do aeroporto. Outros contornos regulatórios mais rígidos também comporiam a regra, como um limite de participação percentual em slots diários por grupo econômico. 

Outra inovação regulatória introduzida pela regulação seria a possibilidade de cessão de slots entre empresas aéreas, o que é popularmente chamado por “mercado secundário de slots”. Em tese, a possibilidade de transacionar slots por detentores desse recurso seria capaz de resultar numa distribuição economicamente mais adequada, visto que no longo prazo o detentor do slot tenderia a ser aquele operador que mais o valorizasse, considerando um aumento do custo de oportunidade. Na prática, e considerando as experiencias internacionais, em especial o tocante ao mercado estadunidense, é esperado que o mercado secundário tenha o efeito de reduzir uma barreira à saída de mercado de operadores, sanando uma falha na regulação anteriormente vigente. 

O conjunto de novas regras deverá ser avaliado em um horizonte de, pelo menos, dez temporadas consecutivas, sendo este o tempo necessário para que os novos mecanismos produzam o resultado esperado. Para tal, serão acompanhados indicadores previamente estabelecidos, capazes de determinar de maneira objetiva se os objetivos regulatórios foram atingidos ou se novas intervenções se fazem necessárias. Esta avaliação será realizada no âmbito de uma Análise de Resultado Regulatório (ARR), que deve funcionar como ferramenta para aperfeiçoamento da função regulatória. 
Considerando a publicação da Resolução nº 682/2022e os efeitos normativos a partir da próxima temporada Verão 2023 (S23), a ANAC procedeu à alocação dos slots disponíveis no banco o que gerou o resultado apresentado no gráfico abaixo:

Fonte: ANAC/SAS

Os resultados iniciais, a partir da nova distribuição de slots para a temporada Verão 2023 (S23), compreendida entre os dias 26/03/2023 e 28/10/2023, já trazem um indicativo de menor concentração. O Índice de Herfindahl-Hirschman (HHI) médio, calculado em relação ao número de slots por operador em dia útil em Congonhas (SBSP), como demonstrado no gráfico acima, caiu de 3917 para 3592, isto é, uma melhora de cerca de 8% neste indicador isolado. O benefício final das regras, no entanto, só poderá ser analisado quando considerado o horizonte de tempo necessário para a produção dos efeitos da regulação. 

Contribui para esse resultado a aplicação de novos parâmetros de coordenação para o aeroporto de Congonhas (SBSP), que priorizam o acesso a empresas de transporte aéreo que possuem pouca participação nesse mercado, sem, contudo, afetar os direitos históricos já anteriormente estabelecidos. É importante ressaltar, no entanto, que existem limitações no potencial de atuação da regulamentação de acesso a slots enquanto ferramenta para minimizar barreiras de entrada e promover aumento de competitividade. Uma solução definitiva viria, somente, por meio de investimentos em ampliação de infraestrutura para melhor acomodação da demanda por slots.

* Raquel Irber de Azevedo Lopes é especialista em Regulação de Aviação Civil da ANAC.
** Rodrigo Neves Martins é gerente técnico de Registro de Serviços Aéreos e Coordenação de Slots.

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