A hora e a vez da fixação vertical de preços mínimos: considerações sobre o caso dos relógios de pulso no Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE

Por Priscila Brolio Gonçalves*

O escoamento eficiente dos produtos e a prestação de serviços relacionados estão entre as preocupações centrais dos fabricantes em diversas indústrias. Isso é particularmente verdadeiro para aqueles que não atuam diretamente nas etapas da cadeia de distribuição mais próximas dos consumidores finais.

Essas questões tradicionais dos mercados assumem contornos ainda mais relevantes com a disseminação dos canais digitais, a consolidação das vendas pela Internet como resultado da pandemia e os recentes choques sofridos pelas cadeias globais de produção[1].

Aqui não trataremos do abastecimento de insumos. O foco deste artigo é sobre produtos finais e as estratégias dos respectivos produtores – ou, em muitos casos, dos criadores, desenvolvedores ou proprietários das marcas pelas quais os produtos são conhecidos, já que a sua fabricação é terceirizada – para comercialização no mercado.

O principal aspecto em se tratando do controle das redes de distribuição culminando com o consumo diz respeito à precificação.

Se o produto chega para os usuários finais com um preço superior ao que a maioria das pessoas está disposta a pagar por ele, em razão das margens acrescidas ao longo da cadeia de distribuição, as vendas serão inferiores às planejadas pelo fabricante. A empresa perderá espaço no mercado para os concorrentes. Da mesma forma, se, em razão de estratégias de descontos dos varejistas, o produto chegar ao consumidor final por um preço inferior àquele que os compradores pagariam, a percepção do usuário sobre a qualidade ou status desse produto pode ser negativamente impactada.  

Essas são algumas razões pelas quais um fabricante ou proprietário de uma marca têm interesse em determinar, anunciar ou sugerir o preço de revenda de um produto. No primeiro exemplo, trata-se de um preço máximo de revenda, buscando evitar perda de participação de mercado para marcas concorrentes. É uma prática que conta com a simpatia das próprias autoridades de defesa da concorrência pelo mundo. No segundo, trata-se de preço mínimo de revenda, com o objetivo de evitar danos à imagem do produto.Alternativamente, neste segundo caso, do ponto de vista concorrencial, há uma preocupação maior, em razão de efeitos potencialmente similares aos de um cartel, o que poderia ensejar a intervenção da agência de concorrência, no caso do Brasil o CADE..

Outra preocupação muito comum das empresas que detêm marcas são os chamados serviços de pré-venda.

Há produtos de maior valor agregado em que a fase anterior ao consumo – em que a decisão de compra é efetivamente tomada – assume importância, envolvendo informações técnicas e até a experimentação pelo cliente. Quando um consumidor deseja adquirir um smart phone, é comum a visita a uma loja física onde os diversos modelos estão expostos e a pessoa é capaz de conversar com um consultor sobre vantagens e desvantagens, comparar funcionalidades, interagir com o produto. Nesses casos, há uma preocupação em remunerar os varejistas independentes que investem nesses serviços, que mantêm estoques, que treinam consultores, e que podem perder vendas para lojas on-line capazes de oferecer preços menores justamente por não realizar esses investimentos (efeito “carona”). A fixação de preços mínimos de revenda pelo proprietário da marca é uma solução para esse problema, mas pode ser uma violação à lei de defesa da concorrência em diversos países.

No Brasil, ao concluir o julgamento do paradigmático caso SKF (2013)[2], o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) sinalizou claramente que a fixação de preços mínimos de revenda não seria tolerada quando a iniciativa da política se originasse da própria rede de distribuição.

No caso concreto, a empresa fabricante de autopeças atendeu à demanda de revendedores preocupados com a política agressiva de preços praticada por alguns deles, e implementou uma tabela de margens mínimas por um período inferior a 1 ano. A SKF foi condenada por 5 votos a 2, após uma análise orientada pela lógica de ilicitude da conduta pelo seu objeto, rompendo com os precedentes do CADE até então.

Não houve análise dos efeitos concretos da tabela sobre o mercado durante a sua vigência. A presunção de posição dominante (muito embora em patamares próximos ao mínimo legal de 20% de market share) e o alegado envolvimento histórico do setor em condutas concertadas foram determinantes para que alguns Conselheiros repudiassem a prática investigada, que foi equiparada a um cartel no mercado de revenda de autopeças. A SKF recorreu ao Poder Judiciário.Até onde é de conhecimento público, não há decisão final transitada em julgado até o momento.

Anos mais tarde, em 2018, a permissão do Tribunal do CADE, em resposta a uma consulta[3] formulada pela Continental, fabricante de pneus, foi celebrada pela comunidade antitruste. Os mais entusiasmados enxergaram na decisão não apenas a flexibilização do posicionamento anterior do Tribunal, mas também diretrizes objetivas para a admissibilidade dos preços mínimos de revenda[4], propiciando um “porto seguro” para empresas e executivos.

A conduta analisada consistia em preços mínimos anunciados (minimum advertised prices ou MAP), implementada com o objetivo de promover investimentos e coibir condutas oportunistas da parte dos distribuidores. Em resumo, restou decidido que, (i) na ausência de poder de mercado, (ii) caracterizada a unilateralidade da conduta (sem envolvimento dos distribuidores ou incentivos para que atuassem em conluio) e (iii) não havendo discriminação por canal de vendas ou por região geográfica, seria lícito à Continental indicar os preços mínimos de revenda a serem anunciados ao consumidor. Houve apenas um voto vencido, no sentido de que a prática fosse reputada como per se ilícita.

Três anos depois, no entanto, em 2021, uma consulta similar (versando sobre anúncios de preços mínimos) apresentada pela fabricante de pneus Michelin, foi respondida de forma negativa pelo Tribunal do CADE[5].

A despeito de a empresa não ser detentora de posição dominante, a maioria dos Conselheiros entendeu que a política provavelmente geraria uma elevação de preços aos consumidores, razão pela qual não poderia ser admitida. Os efeitos cumulativos gerados pela adoção de preços mínimos anunciados por dois importantes fornecedores de pneus foram levados em consideração na espécie. Com isso, caiu por terra a segurança jurídica que alguns intérpretes atribuíam à resposta emitida na consulta da Continental[6]. Cogitou-se modificar a própria autorização dada à Continental, embora não haja registros públicos de movimentação nesse sentido.

É nesse contexto que se situa o julgamento do caso dos relógios de pulso, em meados de 2023.

Trata-se de processo administrativo instaurado em agosto de 2020 para apurar denúncia em face da Technos, consistente em fixação de preços mínimos de revenda (por meio da estipulação de margens mínimas de 100% sobre os preços brutos indicados na nota fiscal)durante um período de cerca de um ano, entre 2017 e 2018. A conduta teria como foco o varejo online de relógios de pulso, embora houvesse registros da prática também em estabelecimentos comerciais físicos. Adicionalmente à restrição vertical de preços, havia uma limitação quanto ao canal de venda, já que as marcas internacionais não poderiam ser ofertadas em market places como Amazon ou Mercado Livre, apenas em sites próprios dos varejistas.

Assim como a SKF, a Technos não negou a política ao ser questionada pela autoridade antitruste, mas esclareceu que se tratava de mera sugestão de preços de revenda, bem como que seria limitada aos produtos comercializados online em fase de lançamento e aos itens de linha, excluído o varejo físico, bem como os relógios do denominado segmento promocional em todos os canais de venda.As justificativas para a conduta incluíam a proteção da marca, o combate à pirataria e o endereçamento do efeito carona.

O caráter sugestivo da conduta foi desde logo afastado na análise realizada. Segundo o voto do Conselheiro Relator, Sergio Ravagnani, houve “efetiva fixação de preços, uma vez que [a prática] estabelecia mecanismos de monitoramento e retaliação em caso de descumprimento da precificação prevista na política”. Por outro lado, constatou-se que, em concreto, a política não era observada por muitos revendedores, e as sanções por descumprimento eram incomuns, sendo ainda mais rara a aplicação de penalidades rigorosas como o rompimento de relações comerciais.

Quanto ao risco de coordenação entre os revendedores, aspecto que assumiu protagonismo no julgamento de SKF, o voto parte das premissas de que “(i) a política comercial foi elaborada em conjunto entre Technos e revendedores, (ii) a pedido dos revendedores que atuavam com pontos físicos, e (iii) que o objetivo desse pedido e da política comercial era assegurar que os lojistas físicos pudessem ter maiores condições de competir com os lojistas virtuais, por meio da redução da competição intramarcas na dimensão de preço” (item 12, nossos destaques).

Todavia, ao analisar os efeitos da conduta, o relator destaca que “não foram identificados indícios (…) de colusão entre os revendedores”; pelo contrário, o mercado de revenda teria “uma estrutura relativamente pulverizada, com perfis variados e predominantemente multimarcas”.

Verifica-se que a presunção de ilegalidade em SKF – amparada na potencialidade lesiva da prática quando proposta ou provocada pela rede de distribuição – foi substituída por uma análise de efeitos concretos no julgamento de Technos. Neste, concluiu-se pela “baixa probabilidade de impactos concorrenciais negativos decorrentes da conduta investigada no mercado nacional de revenda de relógios de pulso, em razão: (i) do curto período de vigência da política comercial implementada (aproximadamente 1 (um) ano);(ii) do escopo limitado da política; (iii) da queda de preços médios das vendas realizadas pela Technos aos seus revendedores; (iv) e da aplicação da política a um universo reduzido de revendedores” (item 259 do voto).Vale destacar que a duração da conduta é muito similar à do precedente no mercado de autopeças. No entanto, ao contrário da Technos, a SKF não teve sucesso ao arguir esse ponto em sua defesa administrativa.

Os mercados de fabricação (mercado de origem) e de revenda(mercado alvo) de relógios de pulso foram analisados em detalhe pelas autoridades, em especial o Departamento de Estudos Econômicos do CADE (DEE), que testou diversos cenários. Os smart watches foram excluídos de todos eles, diante da insuficiência de dados conclusivos sobre sua substituibilidade com os relógios de pulso convencionais da perspectiva dos consumidores.Em razão da elevada dispersão de preços, o DEE identificou três segmentos de relógios de quartzo (básicos, intermediários e luxo[7]), bem como distinguiu entre produtos analógicos e digitais. Após se debruçar sobre o estudo do DEE, o relator optou por manter em aberto a definição de mercado, adotando os cenários da SG e do DEE e, conservadoramente, excluindo os smart watches.

Na etapa de identificação dos mercados relevantes, merecem destaque as considerações sobre a pertinência de se reunir os canais online e físico. Trata-se de interessante discussão que permeia muitos casos emblemáticos envolvendo mercados digitais. Ao analisar a conduta da Technos, as autoridades concluíram que aumentos de preços no canal online – menos representativo nas vendas da Technos -, poderiam impactar as lojas físicas, contribuindo para aumentos gerais em ambos os canais (item 263). Assim, os dois canais foram analisados em conjunto.

O mesmo rigor aplicado à delimitação de mercados foi adotado na análise das condições de entrada[8] e rivalidade[9].

Nesse ponto, como seria mesmo de se esperar, é evidente a diferença em relação às respostas das consultas submetidas pelas fabricantes de pneus Continental e Michelin. Consultas não permitem instrução e devem ser analisadas em 4 meses pelo CADE, o que inviabiliza um escrutínio tão detalhado e criterioso. O caso Technos tramitou como processo administrativo por 3 anos. Além da análise do DEE, foi avaliado pela SG, pela Procuradoria Federal, e pelo Ministério Público Federal junto ao CADE, convergindo as três autoridades na recomendação de arquivamento.

No julgamento pelo Tribunal, unânime, o arquivamento foi fundado na baixa probabilidade de exercício de poder de mercado pela Technos, a despeito de ser a líder de mercado, com participação superior a 20%, relativamente estável ao longo dos últimos anos na maioria dos cenários contemplados. O nível de rivalidade foi reputado como suficientemente alto, os efeitos negativos improváveis[10], e o relator entendeu que não havia necessidade de prosseguir na análise de justificativas e eficiências econômicas da conduta.

Além de concluírem que a Technos não seria capaz de aumentar os preços de forma lucrativa (ou seja, sem perder clientes para a concorrência, que vinha ofertando no mercado produtos similares, nos mesmos segmentos de atuação), as autoridades constataram que a empresa não seria titular de “marcas indispensáveis” e que os varejistas teriam facilidade e custos baixos para trocar de fornecedor.

Nas palavras do relator, contribuíram para o seu convencimento em favor da Technos “os resultados do estudo econômico elaborado pelo DEE, apontando que a demanda no mercado de relógios de pulso é elástica”, combinada com

“… a (i) presença de pelo menos três concorrentes com participações de mercado relevantes e portfólio de marcas nos segmentos em que a Technos atua, (ii) capacidade dos concorrentes de absorver eventual desvio de demanda em caso de aumento de preços, (iii) ausência de marcas imprescindíveis detidas pela Technos na concorrência com seus rivais, (iv) baixos custos de substituição de fornecedores e (v) acesso a consumidores por meio de ampla rede de distribuição disponível” (item 283 do voto).

O relator foi cauteloso, porém, recusando-se a estabelecer diretrizes ou orientações gerais. Ressalvou explicitamente que seria temerário estender o alcance do julgamento a outras políticas de fixação de preços mínimos de revenda, no mesmo setor ou em outros:

Não há (….) qualquer tipo de salvo conduto ou safe harbour decorrente dessa decisão, para autorizar a implementação de práticas verticais restritivas sobre preço, especialmente a modalidade de fixação de preço mínimo de revenda, baseado na política comercial apresentada pela Technos e das justificativas utilizadas para explicar a conduta”(item 289).

Pelo contrário, a “presunção relativa de ilicitude da fixação de preços mínimos de revenda” foi mantida, destacando-se o “elevado grau de preocupação concorrencial” em relação à conduta, recomendando-se aos agentes de mercado “cautela na estruturação de suas políticas comerciais”, para que venham sempre amparadas “por análises econômicas robustas, baseadas em dados mais completos possíveis, que sustentem a racionalidade econômica perseguida e as eficiências econômicas alegadas” (item 290).

Após discorrer sobre potenciais efeitos deletérios da fixação de preços mínimos de revenda (efeitos em tese, discutidos na literatura sobre a matéria), o voto observa que, além da própria Technos, outros dois fabricantes de relógios de pulso (Casio e Orient, respondendo em conjunto com a Technos por 40-50% do mercado) foram acusados de ter implementado a mesma prática.

  A conduta da Casio foi investigada pelo CADE, e arquivada no âmbito da Superintendência Geral[11] pela ausência de poder mercado. A investigação contra a Orient encontra-se em curso, em sede de Inquérito Administrativo[12].

O relator sugere que a adoção paralela da conduta por essas empresas, ainda que não estejam presentes indícios de cartel[13], poderia gerar efeitos prejudiciais cumulativos, culminando com aumentos de preços.

A razão do arquivamento em relação à Technos seria a ausência de poder de mercado unilateral. Não identificamos na versão pública do voto os motivos pelos quais a análise concorrencial, tão minuciosa quanto a esse aspecto, aparentemente deixou de abarcar políticas similares dos demais agentes do mercado. Consta apenas o registro de que não teriam sido colacionados “elementos suficientes, até o presente momento, para concluir que as concorrentes implementam a fixação de preços mínimos de revenda“.

De qualquer modo, resta claro que nem mesmo a própria Technos estaria isenta de investigação e condenação futuras pela mesma prática[14] e há uma recomendação no sentido de que a Superintendência Geral do CADE “considere aprofundar suas análises concorrenciais nas investigações sobre restrições verticais relacionadas a preço no mercado nacional de relógios de pulso, não se limitando à análise da existência ou não de poder individual de mercado”.

Foram mencionadas como merecedoras de atenção as políticas verticais de preços mínimosenvolvendo bens heterogêneos (com diferenciação do produto para além da variável preço), quando adotadas por mais de um agente no mesmo mercado (especialmente se houver histórico de investigações sobre condutas anticompetitivas no setor), implementadas a pedido dos distribuidores, e acompanhadas de “sanções ou ameaças em caso de descumprimento”, bem como de práticas discriminatórias por canal (físico ou online).

Sobre a fixação de preços mínimos em canais de revenda online, destacam-se as conclusões do Relatório Final da Comissão Europeia sobre o inquérito setorial relacionado ao comércio eletrônico[15], instaurado em 2015 com o objetivo de identificar práticas restritivas da concorrência e limitadoras da estratégia de um Mercado Comum Digital (Single Digital Market). Entre os desafios trazidos ou exacerbados pelo desenvolvimento do comércio eletrônico está justamente a disseminação da fixação de preços de revenda, tratada como ilícito por objeto na legislação concorrencial comunitária. 

Finalmente, o voto propõe que o CADE adote iniciativas de advocacia da concorrência em matéria de preços de revenda, nos moldes da Carta aberta publicada pela CMA, Autoridade de Concorrência e Mercados no Reino Unido[16], após duas condenações da prática.

A decisão proferida pelo Tribunal do CADE é, hoje, o último posicionamento da autoridade brasileira sobre a fixação vertical de preços mínimos e enseja reflexões importantes.

O primeiro aspecto a ser observado é que, apesar do resultado (em favor da Technos), a conduta continua no rol de práticas presumidamente ilegais quando adotadas por empresas com poder de mercado (unilateral ou coletivo). A boa notícia é que o Tribunal tende a demandar uma análise detalhada desse requisito (poder de mercado), empregando os recursos e ferramentas disponíveis, inclusive o DEE.

Por outro lado, longe de solucionar o debate iniciado por ocasião da resposta à consulta da Michelin, o julgamento deixa em aberto questões relevantes sobre como aferir eventual posição dominante coletiva ou avaliar os efeitos cumulativos de práticas paralelas adotadas por mais de um agente de mercado. No caso concreto, afastou-se a coordenação explícita entre os agentes, mas não houve aprofundamento sobre os impactos da adoção de preços mínimos de revenda pelos concorrentes. É evidente que terceiros jamais poderiam sofrer condenação em processo no qual sequer figuraram como investigados, mas não se pode descartar que uma abordagem mais holística das políticas no mercado como um todo alterasse a conclusão em relação à representada. As diversas ressalvas contidas na decisão e as recomendações direcionadas para investigações futuras sinalizam, no mínimo, um desconforto em relação a esse aspecto. 

Outro ponto digno de nota é a indicação de que a iniciativa dos distribuidores não seria suficiente para caracterizar como ilícita uma política de preços mínimos de revenda do ponto de vista concorrencial, ainda que possa contribuir para tanto. Nesse caso, diferentemente de SKF, foram analisados os efeitos concretos (não apenas a potencialidade lesiva), e o arquivamento ocorreu não obstante a demanda tenha se originado na rede de distribuição.

No mais, não são perceptíveis as adaptações na metodologia de análise por se tratar de uma conduta com possíveis efeitos sobre o comércio eletrônico, embora esteja clara na decisão a sensibilidade do CADE em relação à organização dos canais de distribuição pelo fabricante.

Por fim, mas igualmente importante: não é possível depreender se a profundidade da investigação realizada, especialmente no que se refere ao poder de mercado, teria sido dispensada caso efetivamente se tratasse de uma sugestão de preços mínimos, como originalmente alegado pela Technos. Contudo, a análise do caso e as orientações finais sugerem que a não-obrigatoriedade da política de preços de revenda poderia ensejar decisões mais favoráveis aos agentes econômicos.


[1]A escassez de chips em decorrência da paralisação das atividades de plantas fabris na China durante a pandemia, por exemplo, teve graves impactos sobre indústrias tão diversas quanto a automotiva e a produção de telefones móveis. Em 2022, a administração Biden aprovou um pacote de 50 bilhões de dólares para incentivar a produção de semicondutores em território norte-americano, buscando reduzir a dependência externa desses produtos (vide, nesse sentido: https://www.economist.com/business/2023/08/07/how-real-is-americas-chipmaking-renaissance, acesso em 26.11.2023).

[2]Processo Administrativo n. 08012.001271/2001-44 (SKF do Brasil Ltda.). Julgado em 20 de janeiro de 2013.

[3] A consulta é um procedimento previsto e regulamentado em resolução do CADE (Resolução 12/2015). Em síntese, “[q]ualquer parte interessada poderá formular Consulta ao Tribunal Administrativo do Cade (….), solicitando-lhe seu posicionamento sobre a aplicação da legislação concorrencial em relação a hipóteses de fato específicas” (art. 1º). Quando cabível, a consulta será respondida em, no máximo, 120 (cento e vinte) dias, e terá efeito vinculante para o CADE e para a parte consulente por até 5 (cinco) anos.

[4] Consulta n. 08700.004594/ 2018-80 (Continental do Brasil Produtos Automotivos Ltda.). Julgada em 16 de outubro de 2018.

[5] Consulta n. 08700.004460/2021-64(Sociedade Michelin de Participação Indústria e Comércio Ltda.). Julgada em 15 de dezembro de 2021.

[6]Na ocasião, em artigo escrito em coautoria com KHARMANDAYAN, recomendamos cautela quanto à interpretação da resposta do CADE, destacando os efeitos limitados da consulta e as ressalvas contidas na decisão (MAP: Is minimum advertised price allowed under the Brazilian Antitrust Law? Conducts enforcement in Brazil frequently asked questions, 2016, disponível em: Conducts_in_Brazil_FAQ.pdf, acesso em 29.11.2023).

[7] A Technos não atua no segmento de luxo, razão pela qual não foi analisado no estudo.

[8] O relator entendeu que não seria possível “concluir que a entrada no mercado fabricação e comercialização de relógios de pulso seja tempestiva, provável e suficiente” (item 176 do voto), razão pela qual houve por bem prosseguir na análise de rivalidade.

[9] Vide itens 177 e seguintes do voto, que serão abordados a seguir.

[10] Nas palavras do relator: “além da análise sobre a estrutura de oferta e comportamento das concorrentes, a baixa probabilidade de efeitos negativos decorrentes da conduta, em razão de parcela restrita do mercado alvo afetado, o não cumprimento das imposições por diversos revendedores alvo das restrições e a duração limitada da prática, foram considerados como evidências adicionais de inefetividade da conduta e, como reforço da ausência de poder de mercado” (item 193 do voto)

[11] Procedimento Preparatório n. 08700.000856/2019-18.

[12] Inquérito Administrativo n.  08700.006900/2017-31.

[13] O relator destaca, no entanto, que “embora se admita a existência de rivalidade, foram encontrados indícios de acomodação entre os concorrentes na presente instrução, como a pouca alternância de posições entre as empresas nos últimos anos, o que pode ter nexo de causalidade com a prática de fixação de preços de revenda, por meio de um efeito sinalizador que afete preços intermarcas e aumente o risco de coordenação tácita entre concorrentes” (item 312).

[14] “Nesse sentido, reitero que o arquivamento do processo em relação à Technos e os fundamentos que o sustentam está baseado nas melhores informações atualmente disponíveis nos autos, dos limites instrutórios provenientes deste processo administrativo e nas circunstâncias específicas explicitadas neste voto” (item 304).

[15] Comissão Europeia. Report from the Commission to the Council and the European Parliament: final report on the e-commerce sector inquiry, Bruxelas, 10 de maio de 2017. Disponível em:  10/2017_ecommerce_SI_final_report_en.pdf, acesso em 07.12.2023.

[16] Competition and Markets Authority. Restricting online resale prices: CMA letter to suppliers and retailers. 20 de junho de 2017. Disponível em: https://www.gov.uk/government/publications/restricting-online-resale-prices-cma-letter-to-suppliers-and-retailers, acesso em 07.12.2023.

*  Priscila Brolio Gonçalves é doutora e mestre em Direito Comercial pela USP, pesquisadora visitante pela London School of Economics and Political Sciences, e autora de livros e artigos sobre direito antitruste, incluindo Fixação e sugestão de preços de revenda em contratos de distribuição: análise dos aspectos concorrenciais, 2 ed., revista e atualizada (São Paulo: Singular, 2016. 368 p.). É advogada atuante em Direito Concorrencial há 25 anos. Fundadora e administradora da banca Brolio Gonçalves Advogados.