O aumento do salário mínimo e dos benefícios a ele vinculados favorece ou dificulta a eliminação da miséria no Brasil?

Mais de 20 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza em função das transferências previdenciárias, particularmente no âmbito do setor rural[1]. De fato, a previdência no Brasil cumpriu papel relevante não apenas na redução da pobreza entre idosos quanto na redistribuição de renda em favor destes últimos e na redução das desigualdades regionais.

O caráter distributivo fica evidente quando se constata que, embora apenas metade da força de trabalho brasileira contribua para a previdência, a quase totalidade dos idosos é hoje coberta por benefícios previdenciários ou pelo benefício assistencial de prestação continuada (BPC) pago ao portador de deficiência e idoso (65 anos ou mais) de família com renda mensal per capita inferior a ¼ do salário mínimo.

Com relação ao setor rural , a quase totalidade dos benefícios previdenciários concedidos possui caráter eminentemente assistencial. Além de seus trabalhadores se aposentarem cinco antes que os urbanos, as contribuições previdenciárias oriundas desse setor nem de longe cobrem as despesas. A base contributiva é pequena, assim como reduzidas são as condições efetivas de contribuição dos trabalhadores rurais brasileiros, cuja grande maioria é carente.

Com isso, a arrecadação rural só consegue cobrir cerca de 10% da sua despesa com benefícios, sendo a diferença coberta pelo Tesouro Nacional, conforme se verifica abaixo.

Arrecadação Líquida, Despesa com Benefícios Previdenciários e Resultado Previdenciário, segundo as clientelas urbana e rural (2009)

R$ milhões de Dez/2009 – INPC

ClientelaArrecadação Líquida (a)BenefíciosPrevidenciários (b)Resultado (a-b)
Urbana168.611170.108(1.497)
Rural5.29842.518(37.220)
Total173.908212.626(38.717)

Fonte: MPS (2010)

Esses benefícios rurais – que, em 2008, superaram as transferências do Fundo de Participação dos Municípios (principal transferência feita pelo Governo Federal aos governos municipais) em cerca de 2/3 dos municípios –, somados ao benefício assistencial, constituíram verdadeiros motores das economias locais. Melhoraram a vida no campo, desestimularam a migração para os centros urbanos e transferiram recursos dos municípios mais ricos para os mais pobres. Efeitos inquestionavelmente positivos.

Agregando o Programa Bolsa Família, constatamos que as transferências de renda hoje representam quase 20% da renda das famílias, contribuindo inequivocamente no combate à pobreza no Brasil[2].

Não obstante, embora se perceba a relevância das transferências para todas as idades, é de fato na população mais idosa que se verificam os maiores benefícios: com a expansão das transferências previdenciárias (87% do total) e da assistencial, o percentual de pobres entre indivíduos com 65 anos ou mais de idade  despencou de 14% em 1978 para menos de 2% em 2008.

É fundamental destacar ainda que não apenas a quase totalidade dos idosos brasileiros recebe renda, como esta renda tem crescido sistematicamente para a maioria deles nos últimos anos. Dois em cada três segurados da previdência social e a totalidade dos beneficiários do BPC recebem benefícios iguais ao salário mínimo, cujo valor aumentou 122% acima da inflação entre 1995 e 2010.

Com isso, estima-se que hoje a cada R$ 1 real de elevação do salário mínimo, as despesas com benefícios previdenciários sobem R$ 198 milhões e as relativas ao BPC, R$ 46,3 milhões. As receitas, por seu turno, por não estarem concentradas em torno dos benefícios de um salário mínimo, crescem apenas R$ 14 milhões. Resultado: o déficit total do INSS é elevado em R$ 230 milhões a cada R$ 1 de aumento do mínimo.

Fruto, em grande parte, da política de valorização do salário mínimo e de sua vinculação ao piso dos benefícios da previdência social, o crescimento dos gastos previdenciários, nos últimos anos, foi estratosférico – passaram de 2,5% para 7,2% do PIB, entre 1998 e 2009 –, abocanhando hoje 32% do total da despesa primária federal.

No caso do benefício assistencial, a situação é menos grave, embora requeira atenção, já que os respectivos gastos mais que dobraram, passando de 0,27% do PIB em 2003 para 0,60% em 2010, o que representa quase 3% da despesa não financeira da União (maior, portanto, do que os dispêndios do Programa Bolsa Família, responsáveis por menos de 2% dessa despesa).

Embora as despesas do BPC sejam maiores do que as do Bolsa Família, o primeiro programa assistencial beneficia 3,2 milhões de idosos e deficientes enquanto o segundo, 12,4 milhões de famílias.

Resultado desse substancial avanço das despesas previdenciária e assistencial vis-à-vis a política de obtenção sistemática de superávits fiscais primários, gastos essenciais ao crescimento autossustentado do País acabaram sendo comprimidos, ao longo do tempo, tais como os vinculados a investimentos em infraestrutura e educação, além dos direcionados à saúde, segurança pública e outros essenciais ao bem-estar da população brasileira.

Além disso, quando se focaliza a situação dos mais jovens e responsáveis pelo Brasil de amanhã, constata-se que, enquanto a pobreza praticamente acabou entre os idosos, 44% das crianças de até 14 anos de idade são pobres, das quais perto de 20%, extremamente pobres. Não seria chegada a hora de passar a focalizar as transferências de renda primordialmente nos mais jovens (sem deixar de amparar os idosos, obviamente)?

Nesse contexto, cabe averiguar se continuar pagando benefícios previdenciários e assistenciais cada vez mais elevados para idosos, já que seguem a política de valorização do salário mínimo, é a melhor forma de reduzir a pobreza e a triste indigência que ainda assolam nosso País.

Ao comparar o combate à pobreza no Brasil com o ocorrido em outros países da América Latina, conclui-se que nossa política não tem sido tão efetiva quanto poderia ter sido, em face do substancial nível dos nossos gastos sociais. Isso porque, de acordo com dados da Cepal de 2008, registramos a quarta pior performance do Continente.

Ademais, informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicilios (PNAD) para o mesmo ano permitem inferir que, entre aqueles que recebem benefícios previdenciários equivalentes a um salário mínimo, somente 7,6% continuam pobres e apenas 0,6%, extremamente pobres. No caso dos idosos que recebem o benefício assistencial de prestação continuada, apenas 9,4% permanecem pobres e 0,8%, extremamente pobres.

Essas estatísticas traduzem a seguinte realidade: resultado da expressiva escalada de aumentos reais verificada pelo piso salarial de nossa economia, quem hoje o recebe não mais pode ser considerado pobre. Isso, por sua vez, implica que, no futuro, novos incrementos reais no valor do salário mínimo tenderão a melhorar a vida dos que, felizmente, já conseguiram deixar para trás a miséria e se distanciar da pobreza. É como se houvesse dois indivíduos pobres, sendo um mais pobre que o outro, e o menos pobre fosse aquele que estivesse recebendo as maiores transferências de renda. Tal estratégia reduz a pobreza, mas não da forma fundamental.

Em outras palavras: embora a vinculação do salário mínimo ao valor do piso previdenciário e do benefício assistencial de prestação continuada tenha contribuído para a redução da pobreza no Brasil, especialmente entre os idosos; a política de valorização desse salário já atingiu um patamar a partir do qual seu efeito sobre a pobreza está praticamente esgotado.

Conclusão: aumentar os gastos com a previdência social e com o pagamento do benefício assistencial não é hoje o melhor instrumento para reduzir a pobreza e pouco resultado tem na diminuição da miséria.

Desse modo, defender as elevadas despesas advindas da política de valorização do salário mínimo sob o argumento de que constituem importante instrumento de redução da pobreza esconde hoje uma grande verdade: se parcela dos gastos redundantes do sistemático aumento do piso previdenciário e do BPC for alocada na expansão de programas sociais efetivamente focalizados nos extratos inferiores de renda, como por exemplo, o Programa Bolsa Família, a pobreza e a miséria diminuirão muito mais.

Assim, caso se queira contribuir para a concretização do pacto contra a miséria proposto pelo novo Governo lançado ao poder a partir de 2011, o mais indicado é mudar a estratégia. Ao invés de continuar elevando a renda daqueles que recebem benefícios previdenciários e assistenciais equivalentes ao salário mínimo, o mais indicado é preservar o valor real desses benefícios (mediante reajustamentos anuais por índice de preços), direcionando parte dos recursos poupados pela não concessão de aumentos reais aos programas de transferência de renda efetivamente focados nos mais pobres.

Se a opção for por dar continuidade à política de valorização do salário mínimo, isso exigirá que se elimine a vinculação entre este salário e os valores do piso previdenciário e do benefício assistencial de prestação continuada.

Tal estratégia possibilitará manter a proteção aos idosos e, ao mesmo tempo, melhorar a qualidade de vida dos brasileiros de baixa renda mais jovens, potencializando, assim, a redução da pobreza e a eliminação da miséria que ainda impedem que tais cidadãos sejam partícipes do crescimento econômico do Brasil. E o melhor: sem pressionar o aumento das despesas públicas, que devem passar a conferir maior foco aos investimentos em infraestrutura e aos gastos em educação, essenciais ao desenvolvimento sustentado da economia brasileira, com evidentes benefícios à camada mais pobre da população.

Para ler mais sobre o tema:

AMAROMeiriane N. Terceira Reforma da Previdência: até quando esperar? Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado, fev/2010 (Texto para Discussão nº 84). Disponível no site: http://www.senado.gov.br/senado/conleg/textos_discussao.htm

Palavras-chave: salário-mínimo, miséria, benefícios, previdenciários, aposentadorias, idosos, pobreza, redistribuição de renda, bolsa família.


[1] MPS. “Evolução Recente da Proteção Previdenciária e seus Impactos sobre o Nível de Pobreza”. Informe da Previdência Social, vol. 22, nº 10, outubro 2010. Brasília: MPS, 2010.

[2] IPEA. Previdência e Assistência Social: Efeitos no Rendimento Familiar e sua Dimensão nos Estados. Comunicados do IPEA nº 59, 22/07/2010. Rio de Janeiro: IPEA, 2010.