O Novo Multilateralismo em uma Ordem Internacional em Transformação

Por Eiiti Sato

Multilateralismo e regimes internacionais

O multilateralismo passou a ser uma componente importante na política internacional apenas no século XX, com o estabelecimento da Liga das Nações em 1919. A partir de então, a prática do multilateralismo ganhou crescente importância em especial depois da Segunda Guerra Mundial. A criação Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945 serviu, em larga medida, de padrão e de referência para levar o multilateralismo para esferas regionais e também para áreas específicas das relações internacionais como a economia, a saúde, o trabalho e mais tarde para as questões ambientais e para os temas sociais. Algumas organizações formadas no período eram derivadas de iniciativas anteriores, como foi o caso da União Panamericana, criada na esteira das Conferências Pan Americanas iniciadas 1889. Em 1948 a União Panamericana foi substituída pela Organização dos Estados Americanos (OEA). A Organização Internacional do Trabalho nascera juntamente com a Liga das Nações, na esteira do Tratado de Versailles (1919) e, na esfera econômica, as principais instituições foram criadas em 1944, em Bretton Woods (FMI e Banco Mundial). O General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), por sua vez, só foi criado em 1947. Observa-se que, apesar das datas e das peculiaridades individuais, é possível afirmar que a criação dessas instituições ocorreu dentro do mesmo espírito que havia levado à criação da Liga das Nações (1919) e da ONU (1945) e também no entendimento de que uma parte considerável das relações internacionais passava a ser organizada e conduzida de forma regular por meio de práticas e de padrões regulares que, mais tarde, os estudiosos de relações internacionais passariam a chamar de regimes internacionais[3]. Dessa forma, após a Segunda Guerra Mundial, sob a inspiração dessas iniciativas e da ideia de que em muitos aspectos a integração regional e global poderia facilitar o entendimento e a prosperidade econômica, o multilateralismo tornou-se uma prática regular nas relações internacionais.

Com efeito, foi a partir de 1945 que houve a disseminação mais ampla do entendimento de que as relações internacionais apresentavam uma crescente regularidade, e que as relações econômicas e sociais tornavam-se cada vez mais integradas, demandando arranjos multilaterais mais organizados e mais permanentes. Na realidade, na criação desses arranjos, as experiências vividas no entreguerras foram marcantes e reveladoras do fato de que no mundo já havia se formado um verdadeiro “sistema internacional”, isto é, a Grande Depressão da década de 1930 havia mostrado que alguns fenômenos como a inflação, o crescimento e a recessão podiam se propagar como ondas, de país para país. De fato, a grande crise havia mostrado que, até mesmo uma economia tão grande e tão generosamente dotada de recursos naturais, como a dos EUA, não estava isenta de sofrer as consequências da crise que se desencadeara em 1929 e que se estendera por toda a década de 1930. Mesmo no plano das teorias, já emergiam abordagens como a dos ciclos econômicos que argumentava que a evolução das economias ocorria alternando períodos de crescimento e de estagnação e, por vezes, de recessão. A hipótese dos ciclos econômicos foi primeiramente associada à própria natureza do capitalismo sendo, depois, associada a mudanças tecnológicas[4].

Após a dolorosa experiência da Segunda Guerra Mundial, as iniciativas de criação de organizações internacionais foram também fortemente impulsionadas pelo desejo de paz. Nesse entendimento, a criação de organizações internacionais de todos os tipos era uma forma de traduzir em iniciativas esse desejo de paz e de cooperação internacional. Esse ambiente largamente favorável ao multilateralismo começou a ser questionado com a crise do petróleo desencadeada em 1973. Em termos de tendência, a crise no mercado de petróleo foi um evento revelador de que a ordem econômica e política, que por três décadas havia orientado as ações dos atores no cenário internacional, chegava aos níveis de seu esgotamento. A dependência do petróleo havia se estendido tanto para as economias avançadas quanto para as economias em desenvolvimento e os padrões de exploração dessa commodity, dramaticamente, mostravam seus limites. Além disso, por sua complicada vinculação com o mundo da política e da segurança internacionais o petróleo possuía um cunho estratégico sem paralelo com outras commodities.

Conceitos e terminologia

Para a compreensão adequada da questão do multilateralismo parece oportuno recuperar e dar maior precisão no entendimento de alguns termos. Começando pelo próprio termo multilateralismo, é preciso lembrar que não são apenas as organizações mais amplas e gerais como ONU e OMS que podem ser caracterizadas como “multilaterais”. Organizações regionais como União Europeia e Banco Interamericano do Desenvolvimento também são instituições multilaterais, muito embora não sejam globais, isto é, não estejam abertas à participação de todas as nações organizadas. Assim, o multilateralismo é uma prática diplomática que pode envolver a participação de toda a comunidade internacional de nações como a ONU ou pode envolver apenas um particular grupo de nações reunidas geograficamente – como a União Europeia – ou em torno de algum objetivo compartilhado – como é o caso da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica).

Embora a difusão do multilateralismo tenha ocorrido associada a iniciativas de paz e de cooperação internacional, é apenas uma modalidade ou recurso utilizado pela diplomacia. Instâncias multilaterais podem ser procuradas ou podem ser vistas com desconfiança tanto por grandes potências quanto por nações mais frágeis. Para as grandes potências, instâncias multilaterais podem ser necessárias para a organização de regimes internacionais de seu interesse, mas podem ser problemáticas quando seus interesses não coincidem com boa parte da comunidade internacional. Por outro lado, para as nações menos poderosas, inclusive para as chamadas potências médias, as instâncias multilaterais podem ser úteis para construir alianças em torno de questões que não sensibilizam as grandes potências, mas, ao mesmo tempo podem ser problemáticas para os casos em que seus interesses específicos estejam em jogo. Ou seja, a diplomacia multilateral não é um recurso aplicável a todas as questões e circunstâncias e, além disso, o multilateralismo para ser eficaz precisa levar em conta outras variáveis inerentes à política internacional, em especial o poder.

Problemas desse tipo foram notavelmente visíveis no estabelecimento da ONU. Com efeito, nas negociações para a criação da instituição quando a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim, as grandes potências não se sentiam à vontade com a perspectiva de que as questões internacionais pudessem ser decididas a partir do princípio “one country, one vote”, especialmente a URSS que, à época, claramente, tinha muito menos países membros que a apoiavam, mas as demais grandes potências também tinham divergências que as dividiam, como era o caso dos EUA e da Grã-Bretanha, que divergiam quanto ao destino do sistema colonial britânico que ainda se mantinha vivo sob muitos aspectos[5]. O fato é que a introdução do direito de veto foi importante na solução dos impasses no processo de criação da ONU. O entendimento foi o de que uma ONU sem qualquer uma das grandes potências seria uma instituição sem a eficácia, tal como havia ocorrido com a Liga das Nações, que excluíra a Alemanha e da qual os EUA se abstivera de participar, muito embora o presidente Woodrow Wilson tenha sido o proponente de sua criação na Conferência de Versailles.

Mais recentemente, pode-se apontar o caso da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), que foi criada em 1964 para tratar dos problemas de comércio e desenvolvimento. Diferentemente do GATT, em que as questões de comércio eram tratadas de forma negociada em bases praticamente bilaterais ou pelo consenso, na UNCTAD as questões de comércio internacional seriam tratadas politicamente sob o princípio do “one country, one vote”. O fato é que a UNCTAD viveu seu apogeu na segunda metade da década de 1970, quando as nações exportadoras de petróleo (OPEP) desfrutaram, por um breve momento, de um papel bastante decisivo no comércio internacional. Naquele breve momento, a maioria dos países identificados como “Terceiro Mundo” passou a atuar ativamente na UNCTAD, enquanto potências como a Grã-Bretanha e os EUA mantinham-se à margem uma vez que, de qualquer modo, como órgão da ONU, qualquer resolução proposta no âmbito da UNCTAD só teria eficácia se aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, onde as cinco grandes potências tinham o direito de veto.

Outro entendimento importante a respeito de conceitos, é que na política internacional o oposto de cooperação não é conflito, mas sim o unilateralismo. Ou seja, cooperação internacional não significa, necessariamente, ações coletivas consensuadas em todos os casos e circunstâncias. Na política internacional, cooperação significa que as potências – grandes ou pequenas – que participam de um arranjo internacional seguirão as regras do regime vigente e não deixarão os arranjos de que fazem parte, ainda que não concordem com o curso dos acontecimentos e das eventuais decisões. O unilateralismo se configura quando um país passa a tomar decisões e a agir em matéria de política internacional sem consultar outros países e sem levar em conta princípios e normas vigentes nos regimes internacionais. O mundo da política não é feito de verdades indiscutíveis de validade universal. Alianças, prioridades, escolhas e políticas de ação não têm o mesmo significado para todos os países, e os fatos e interesses correntes na política internacional afetam cada país de modo diferente tanto em termos de implicações quanto em termos de intensidade dessas implicações. O consenso é sempre desejável, mas na maioria das questões raramente se revela possível e, assim, o que cabe à diplomacia evitar é a configuração de situações agressivamente inaceitáveis para as potências – grandes ou pequenas.

Organizações internacionais são entidades vivas e se transformam acompanhando a ordem internacional

As organizações internacionais que formam o ambiente por excelência dentro do qual a prática do multilateralismo se desenvolve são entidades vivas, isto é, são criadas dentro de circunstâncias econômicas e políticas definidas e, ao longo do tempo, passam por transformações acompanhando as mudanças na ordem internacional. Tomando como exemplo as organizações na área da economia, esse fato é visível inclusive em cifras. O Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial foram criadas em Bretton Woods, em 1944, como iniciativas para orientar a reconstrução da economia internacional quando a Segunda Guerra Mundial chegasse ao fim. Cabe lembrar que, na altura em que a Conferência de Bretton Woods se realizava (julho/1944), a guerra atingia seu auge em termos de ações militares. O desembarque da Normandia havia ocorrido no início de junho, mas o avanço das tropas aliadas na Europa se fazia por meio de combates difíceis que implicavam pesadas perdas de ambas as partes. Apenas do lado americano, à época da Conferência de Bretton Woods, havia mais de 6 milhões de tropas combatentes, a maior parte nos teatros de operações militares na Europa e no Pacífico. O International Bank for Reconstruction and Development (Banco Mundial) foi estabelecido em 1944 com o objetivo de financiar a reconstrução econômica, sobretudo da Europa, onde a destruição por meio de combates e bombardeios em cidades importantes ainda era crescente em meados de 1944. A guerra chegou ao fim em 1945 e a reconstrução na Europa avançara rapidamente não com recursos do Banco Mundial, mas do Plano Marshall[6]. Em 1958, no âmbito do Banco Mundial, foi criada a Corporação Financeira Internacional (IFC, sigla em inglês) com o objetivo de canalizar investimentos internacionais privados para os mercados de capitais que retomavam seu vigor. Após a reconstrução do pós-guerra, o tema do desenvolvimento foi estendido para as nações pobres, sendo criada em 1960 a Associação Internacional para o Desenvolvimento (IDA, sigla em inglês) para avaliar e autorizar a concessão de créditos para propostas de projetos de desenvolvimento de governos de países pobres. Em 1966, pela Convenção para a Resolução de Controvérsias sobre Investimentos entre Países e entre Residentes em Países Estrangeiros foi estabelecido o Centro para Resolução de Controvérsias sobre Investimentos com o objetivo de proporcionar segurança jurídica e estimular os fluxos de investimentos internacionais. Em 1988, ainda no âmbito do Banco Mundial, foi criada a Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (MIGA, na sigla em inglês) com o objetivo de prover seguro e garantias financeiras contra riscos decorrentes de turbulências no ambiente político em países em desenvolvimento.

Essas cinco instituições passaram a formar o que hoje é chamado de Grupo Banco Mundial e a criação progressiva de cada uma dessas instâncias refletiu as mudanças vividas pela ordem econômica internacional desde 1944. Nessa evolução do Banco Mundial é possível observar também a substancial mudança de sua “carteira de projetos”. Nos primeiros anos da sua criação, a motivação mais imediata do Banco Mundial era a reconstrução econômica do pós-guerra, em seguida, quando a reconstrução se completava, surgiu a preocupação em orientar o fluxo internacional de capitais públicos e privados para a promoção do desenvolvimento das nações pobres. Nesse processo, as rivalidades da guerra fria desempenharam papel importante nas decisões estratégicas do governo americano. Mais tarde, no período geralmente referido como era da “globalização”, os projetos financiados pelo Banco Mundial passaram a se concentrar em temas como boa governança, inclusão social e igualdade de gêneros, inclusive porque os fundos disponíveis tornaram-se incompatíveis com os volumes que seriam necessários para continuar financiando investimentos em grandes projetos de desenvolvimento de infraestrutura econômica pelo mundo. Na realidade, um traço marcante da “globalização” foi a perda de relevância dos recursos públicos diante da enorme expansão da poupança privada[7].

Quanto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), também criado em 1944 como um fundo de estabilização e baseado na hipótese básica de que o dólar americano seria capaz de servir como “âncora” para o sistema monetário internacional, também sofreu profundas modificações à medida que a economia mundial se recuperava dos impactos e das restrições impostas pela Segunda Guerra Mundial. A retomada do dinamismo e do crescimento ocorreu com muito mais vigor do que até mesmo os estrategistas mais otimistas podiam prever. Além do dólar como a única moeda conversível ao ouro, o FMI fora criado tendo como principais mecanismos para administrar a liquidez de moeda internacional o compromisso das nações de observar a regra geral de utilizar as taxas cambiais como recurso de ajuste do balanço de pagamentos somente diante de desequilíbrios considerados “estruturais” (variações cambiais bem acima de 1%) e com a anuência dos governadores do FMI. Outro instrumento de ação do FMI, que definia o próprio nome da instituição, era seu papel como fundo de estabilização, isto é, os recursos financeiros do FMI deveriam ser suficientes para prover empréstimo para países em dificuldade de balanço de pagamentos.

A história da instituição é conhecida. Com o passar do tempo, essas características do FMI foram sendo abandonadas. A conversibilidade em ouro do dólar americano foi abandonada em 1971, mas tratava-se de um processo inevitável que, na realidade, refletia o sucesso das políticas de recuperação e desenvolvimento lideradas pelos EUA. Com efeito, ao longo da década de 1950, as reservas em ouro da economia americana já eram declinantes e, ao final dessa década, ultrapassou a marca simbólica de 50% das reservas mundiais de ouro. No início da década de 1960 o economista Robert Triffin identificou o que ficou conhecido como o “Dilema de Triffin” que consistia no fato de que a economia americana, em virtude de seu papel de provedor de recursos para os programas de desenvolvimento da economia mundial, inevitavelmente incorria em déficits continuados no balanço de pagamentos, o que significava perder reservas de ouro e, assim, a interrupção desse processo significaria reduzir a disponibilidade de dólares para os programas de desenvolvimento[8]. O fato é que, em agosto de 1971, o governo americano oficialmente suspendeu a conversibilidade do dólar em ouro, diante da clara incapacidade de a economia americana acompanhar a expansão da liquidez internacional que, na essência, significava que a expansão da economia mundial ocorria a taxas maiores do que as taxas de crescimento da economia americana, o que, aliás, era um pressuposto das políticas de desenvolvimento.

No que se refere à disposição de o FMI funcionar como fundo de estabilização para as economias com problemas no balanço de pagamentos, também ocorreu o processo de crescente incapacidade de o FMI desempenhar esse papel. Já na década de 1960 os déficits, sobretudo das economias em desenvolvimento, eram crescentes e o FMI havia passado a publicar periodicamente um boletim intitulado World Debt Tables, que trazia a evolução do endividamento internacional que se acumulava, ultrapassando de muito a capacidade financeira do FMI de prover recursos para todas essas nações endividadas. Com o desencadeamento da crise do petróleo em fins de 1973, houve uma verdadeira explosão de liquidez e do endividamento internacional. O resultado foi que as nações endividadas ao invés de procurar o FMI – como era previsto nos acordos de Bretton Woods – passaram a procurar os mercados privados de crédito que, de fato, possuíam recursos financeiros em proporção muito maior do que os disponíveis no FMI[9].

O resultado, obviamente, foi o abandono pelo FMI de seu papel de provedor de recursos financeiros para economias endividadas como estabeleciam os acordos de Bretton Woods, que definia o FMI como um fundo de estabilização. Nesse processo, o FMI passou a ser demandado como avalista de empréstimos nos mercados privados feitos por governos endividados. Ao assumir essa condição de avalista, o FMI passou a atuar como instância de monitoramento do endividamento internacional e também como uma espécie de “corregedor” das políticas de ajustamento praticadas pelos governos endividados. Em outras palavras, nos fins da década de 1970, o perfil de atuação do Fundo Monetário Internacional havia mudado de forma bastante substancial em relação aos acordos originais de 1944.

Outras organizações internacionais, notadamente a ONU, também sofreram mudanças substanciais ao longo do tempo. Quando foi criada em 1945, a ONU contava com apenas 51 países-membros, hoje os países-membros da ONU somam um total de 193. Apenas essas cifras já indicam que a entidade passou por grandes mudanças, mas há muitas outras mudanças importantes. Instâncias da ONU como a CEPAL, a UNCTAD e a UNIDO, viveram momentos de grande relevância na política internacional, mas enquanto o interesse por essas instâncias declinava, outras instâncias associadas a novos temas como aquelas voltadas para temas como o meio ambiente, o clima e a saúde pública ganharam relevância. Na trajetória da ONU, vale observar que há pouco mais de 10 anos houve uma tentativa fracassada para alterar a constituição do Conselho de Segurança. Houve debates e muita movimentação diplomática, mas, ao final, embora tenham sido organizados debates e estratégias que envolviam campanhas estruturadas, inclusive de grandes potências, na demanda por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, a proposta de alteração da composição e das funções do Conselho de Segurança não prosperou, sendo abandonada. A respeito dessa tentativa frustrada e das dificuldades de se mudar a composição política de uma organização internacional, parece instrutivo o fato de que, ao final da Segunda Guerra Mundial, ao invés de retomar a Liga das Nações, que já estava formalmente estruturada, decidiu-se criar a Organização das Nações Unidas cujos objetivos eram praticamente os mesmos da Liga das Nações. Percebeu-se que retomar o funcionamento da Liga das Nações significaria, entre outras coisas, introduzir mudanças significativas na composição do Conselho da Liga, o que inevitavelmente resultaria em retomar as intermináveis controvérsias e disputas políticas como aquelas ocorridas em 1926, quando a Liga das Nações decidiu incorporar a Alemanha, inclusive como membro permanente do Conselho da Liga – uma posição que a diplomacia brasileira falhara em conseguir, e que custou a retirada do Brasil como país-membro da Liga das Nações[10].

Outro desenvolvimento importante nas práticas do multilateralismo, especialmente após a década de 1970, foi a crescente relevância das organizações regionais, em especial da Comunidade Econômica Europeia, que no início da década de 1990 foi transformada em União Europeia, com várias instâncias decisórias supranacionais e até mesmo com uma moeda comum que passou a ser adotada pela grande maioria dos países-membros. Fora da Europa, várias iniciativas de integração regional também foram postas em prática tais como o NAFTA, o MERCOSUL, o Pacto Andino e até mesmo esse estranho arranjo que é o BRICS.

Outro desenvolvimento importante no período foi a emergência de arranjos informais (G-7, G-20, Fórum Econômico Mundial de Davos etc.) como instâncias para informar, debater e, eventualmente, ajudar na construção de consensos internacionais. Em outras palavras, o multilateralismo assumiu uma feição completamente diferente da tradicional concepção de organizações formalmente estruturadas. Na realidade, a esse respeito, vale lembrar a experiência do GATT, que apareceu como solução para orientar o regime de comércio internacional diante das dificuldades de se estabelecer uma Organização Internacional para o Comércio com estatutos, instâncias e normas bem definidas como uma organização internacional em sua plenitude jurídica. O GATT acabou permanecendo por décadas (1947-1994) como uma “proto-organização internacional” baseada em um acordo executivo e não em um tratado internacional. Isto é, enquanto uma organização internacional exige como base um estatuto na forma de um tratado internacional que demanda as formalidades de ratificação, o acordo executivo exige apenas a assinatura dos governantes, pois, em princípio, não significa assumir formalmente direitos e obrigações de Estado dos países participantes. Nesse quadro, é possível compreender o modus operandi do GATT baseado nas rodadas de negociação comercial, e não a tomada de medidas e providências comerciais de acordo com regras e condições estabelecidas em estatuto (Carta da ONU, Carta da Liga das Nações etc.) De certo modo, é o que vem sendo praticado pelas conferências sobre o clima, nas quais são debatidas propostas sobre possíveis medidas e objetivos que se transformam em compromissos de governos e não em obrigações de Estado.

O multilateralismo em um mundo mais integrado

Ao se observar a cena internacional chama a atenção o crescente nível de integração política, econômica e social em escala mundial. Salvo algumas exceções como Coreia do Norte e Cuba, que, por razões muito particulares, ainda mantêm políticas de isolamento em suas práticas e instituições. Hoje é impossível pensar em nações isoladas. O mundo se transformou em uma verdadeira coletividade que, embora não seja uma coletividade homogênea, não há qualquer dúvida de que existe um verdadeiro sistema internacional. O avanço das tecnologias, notadamente nas comunicações e nos transportes, tornou as relações políticas, econômicas e sociais profundamente integradas. Por exemplo, os dados mostram que o movimento de turistas no mundo em pouco tempo evoluiu de forma exponencial no século XXI. Em 2005 foram registrados 809 milhões de turistas internacionais e, em 2018, esse número havia se elevado para 1.407 milhões de turistas que viajaram através de fronteiras. Embora a metade desses turistas tenha tido por destino a Europa, a grande maioria dos países passou a receber anualmente milhares de turistas oriundos de todo o mundo. Quando se olha a evolução das transações comerciais e qualquer outra atividade nos negócios, na ciência e na cultura, as cifras revelam a mesma crescente integração internacional. Ou seja, a integração internacional ultrapassa de muito, e é muito mais dinâmica do que a integração por meio de organizações internacionais formalmente estabelecidas.

Usava-se a expressão “integração regional” para designar a formação de sistemas regionais como a Comunidade Econômica Europeia ou o MERCOSUL, por meio dos quais se estabeleciam facilidades comerciais e políticas entre os países que integravam esses arranjos. Surgiram até mesmo “teorias da integração” para explicar a existência e as vantagens decorrentes da formação de sistemas regionais de integração[11]. No entanto, de forma crescente, a integração formal, isto é, a criação de organizações internacionais de integração juridicamente estruturadas foi dando lugar ao entendimento de que há hoje um avanço de uma integração real, cada vez menos dependente de tratados internacionais em seu sentido pleno. Vale observar que esse desenvolvimento ocorreu, em larga medida, em decorrência das possibilidades que foram abertas por essas organizações formais tanto regionais quanto globais. Isto é, nações como o Brasil e a Argentina são hoje muito mais integradas do que o eram há três ou quatro décadas, independentemente de mudanças que possam ser introduzidas no MERCOSUL, ou até mesmo, eventualmente, de sua extinção. Outro exemplo é o caso do Reino Unido que, apesar de ter deixado de integrar a União Europeia, não significa que, sob muitos aspectos, deixará de continuar sendo uma economia, uma cultura e um país, profundamente integrado à Europa. Algumas facilidades sobretudo comerciais, obviamente, deixarão de existir mas, em aspectos essenciais da cultura, dos padrões sociais, e até mesmo das práticas econômicas, o Reino Unido continuará tendo os países da Europa como seus principais parceiros. Na realidade, nas questões mais importantes, desde a Idade Média o Reino Unido sempre fez parte do mundo político, econômico e social europeu.

Esses casos retratam mudanças importantes nas relações internacionais, inclusive na prática diplomática. Nesse sentido, parece oportuno lembrar o processo de abertura do comércio do Japão no século XIX. Ao longo do período de cerca de 250 anos, iniciado com a instauração do xogunato de Ieyasu Tokugawa, no início do século XVII, o Japão permaneceu fechado às relações políticas e comerciais com o mundo. Foi somente a partir do Tratado Kanagawa assinado em 31 de março de 1854 entre o Comodoro Mathew G. Perry e os representantes do Shogun que as relações entre o Japão e os EUA puderam ter início. Em 1858 foi assinado um Tratado de Amizade e Comércio entre o Japão e os EUA, ao qual se seguiu a assinatura de tratados semelhantes com outras potências do Ocidente. Foi somente depois dessas ações diplomáticas que o comércio e a cooperação em outros domínios entre o Japão e as potências ocidentais puderam florescer garantidas pelo estabelecimento de escritórios e de representações comerciais permanentes nesses países sob a garantia de acordos e de mecanismos de proteção mútua de direitos a estrangeiros residentes.

Esse caso serve para ilustrar a mudança bastante radical ocorrida na prática diplomática e no seu papel nas relações entre nações desde o século XIX. Com efeito, mesmo sem a dramaticidade do caso das relações políticas e comerciais entre os EUA e o Japão, até as primeiras décadas do pós-Segunda Guerra Mundial a assinatura de acordos diplomáticos eram essenciais para dar início à cooperação comercial e política entre as nações. Ou seja, antes da globalização, em larga medida, as relações comerciais somente se estabeleciam depois de um processo diplomático formal, frequentemente difícil e complicado. Na realidade, no caso relatado da abertura comercial do Japão, houve até mesmo a ameaça do uso do poder de fogo da frota comandada pelo Comodoro Perry. Nos dias de hoje, por diversos meios, iniciativas no comércio e em ações cooperativas internacionais frequentemente são tomadas pelos próprios atores, isto é, por empresas e mesmo por organizações civis porque, de algum modo, os acordos necessários simplesmente já existem na forma de algum arranjo multilateral que contempla essa possibilidade, ou porque nenhum governo irá contestar ou criar dificuldade a qualquer iniciativa que pode beneficiar seus nacionais. Uma clara manifestação dessa nova realidade tem sido o crescente ativismo do que tem sido chamado de “paradiplomacia”, na qual instâncias subnacionais tomam iniciativas de fazer avançar os interesses internacionais de municípios ou de outras categorias que hoje compõem as estruturas políticas das nações. Em outras palavras, se em meados do século XIX as relações comerciais entre os EUA e o Japão só poderiam se iniciar após uma ação diplomática do governo americano apoiado até pela Marinha de guerra, hoje, em um mundo já bastante integrado, a diplomacia pode ser acionada para regularizar ou aprimorar alguma iniciativa em curso, mas raramente será chamada para iniciar um processo de aproximação internacional, excetuando casos excepcionais como os da Coreia do Norte ou de Cuba.

É nessa perspectiva que eventuais movimentos diplomáticos na esfera multilateral devem ser vistas. Na realidade, o novo multilateralismo valoriza cada vez mais arranjos informais como o G-8 e o G-20, ou ainda os pactos firmados em conferências internacionais como têm sido o caso das conferências sobre o clima. Enquanto, por outro lado, instâncias como a Organização Mundial do Comércio (OMC) atuam em áreas já estabelecidas e organizadas nas quais o trabalho diplomático pode ser requerido apenas para resolver questões pontuais que, eventualmente, podem incluir o acionamento do mecanismo de solução de controvérsias. Além disso, questões envolvendo petróleo ou produtos industriais são tratadas por regimes próprios.

Em relação às organizações internacionais formais, vale refletir também sobre sua eficácia, que continua dependendo muito mais das condições e dos recursos do próprio país participante do que de ativismo diplomático de qualquer tipo. Na realidade, organizações como a OCDE, por exemplo, funcionam principalmente como instâncias que oferecem formas de reconhecimento ou certificação internacional de “qualidade” tais como o cumprimento em bases regulares de cláusulas ambientais, o respeito aos direitos humanos e à liberdade de imprensa e, na economia, depende do sistema fiscal e dos indicadores de segurança jurídica, que devem ser compatíveis com os indicadores dos demais países integrantes do bloco. Ou seja, em termos práticos, o país ao tornar-se membro da OCDE pode ser incluído nos estudos e nos relatórios produzidos pela instituição e para quaisquer iniciativas na esfera internacional, inclusive para receber investimentos de outros países, a posição que o país ocupa nesses estudos e relatórios serve como uma espécie de “certificação de qualidade”. De forma mais específica, pode-se mencionar a importância dos efeitos sobre as agências internacionais de classificação de risco financeiro que, na realidade, são organizações privadas, mas cujas avaliações refletem o conjunto da imagem que as nações e as grandes companhias desfrutam na esfera pública. Nesse caso, relatórios e estudos oficiais produzidos por organizações como a OCDE desempenham importante papel na construção dos conceitos de confiabilidade e segurança atribuídos a empresas e à economia das nações.

Considerações finais: o Brasil e o multilateralismo

Finalmente, cabe uma breve consideração sobre a participação de governos em instâncias multilaterais. É possível classificar como participação bastante ativa quando governos propõem a criação de uma nova organização internacional ou toma medidas efetivas para o estabelecimento e para o funcionamento regular de uma organização internacional. A motivação para esse tipo de atitude deve ser o interesse desse governo no sentido de criar um novo regime internacional ou modificar de alguma forma um regime vigente no sentido de melhor atender seus interesses e suas visões sobre princípios entendidos como adequados para orientar o comportamento dos atores na cena regional ou global. Essa forma de atuar em relação a instâncias multilaterais é característica de grandes potências cujos interesses tendem a ser amplos e se estendem para muitas esferas que podem ser influenciados por políticas praticadas por outras nações. Entre os casos mais notáveis dessa forma de participação em instâncias multilaterais, sem dúvida, destaca-se o dos Estados Unidos na criação e na administração das organizações internacionais criadas na esteira da Segunda Guerra Mundial, notadamente a ONU e as organizações que formaram os regimes internacionais na esfera econômica (FMI, Banco Mundial e GATT). Nesses casos o governo dos EUA exerceu não apenas uma liderança política decisiva na criação dessas organizações, mas foi a principal fonte de recursos para operacionalizar seu funcionamento. Entre as muitas evidências dessa liderança bastante ativa está o fato de que quase todas essas instituições estão sediadas nos EUA que, até hoje, contribui com parcela significativa dos recursos necessários ao seu funcionamento regular.

Uma segunda categoria de atitude de governos em relação a instâncias multilaterais seria a dos governos que atuam com regularidade dentro dos regimes internacionais, dos quais essas organizações constituem parte importante. Pode-se considerar que essa modalidade de participação em instâncias multilaterais caracteriza-se por: 1) levar as questões de interesse nacional para serem consideradas nessas instâncias, aceitando e cumprindo suas decisões e recomendações; 2) participando, sempre que solicitado, de comissões, de grupos de trabalho e de iniciativas de ação das organizações internacionais; 3) pagando com regularidade as taxas e contribuições financeiras previstas nos estatutos dessas organizações. Esse padrão, na realidade, reflete o comportamento da grande maioria das nações, para quem os regimes internacionais constituem apenas uma realidade com a qual se deve conviver e, objetivamente, tendo por entendimento o fato de que a maior parte das oportunidades e de problemas deverá emergir dentro desses regimes.

Essa classificação – obviamente bastante simplificada – foi extraída da teoria dos regimes internacionais, que discute a formação, o declínio da eficácia e as mudanças dos regimes internacionais[12]. Como já foi apontado, uma forma de manifestação do multilateralismo são os arranjos regionais e também os arranjos voltados para objetivos específicos (temas como meio ambiente, proteção de direitos humanos, promoção de formas de desenvolvimento social, desenvolvimento científico, segurança etc.) e, nesse quadro de possibilidades, os governos podem ser muito pouco atuantes em alguns arranjos ou regimes de que participam e, ao mesmo tempo, podem ser muito ativos em um ou outro regime específico do qual participam e que podem ser mais relevantes para seus interesses.

Nesse quadro, pode-se constatar que, para um país como o Brasil, na condição de potência média, a participação em instâncias multilaterais dificilmente poderia ir além de um participante regular dos regimes internacionais e das instituições e práticas que compõem esses regimes. Isto, no entanto, não impediria que o governo brasileiro em certas circunstâncias e em certas instâncias tivesse uma postura mais afirmativa como ocorreu, por exemplo, na Segunda Conferência de Paz da Haia. Na realidade, em 1907 o multilateralismo era ainda uma experiência muito nova nas relações internacionais e também não havia assumido as características atuais. À época, as visões predominantes eram ainda fortemente centradas em princípios jurídicos e na noção de que a soberania das nações era um valor quase absoluto, como era típico da visão de mundo dos homens de Estado da era vitoriana. Esse fato explica a agenda de debates da Conferência que foi centrada em temas como os recursos jurídicos para a solução pacífica de conflitos armados, a imposição de limites ao emprego de certos armamentos nas guerras, os direitos e as prerrogativas da neutralidade numa guerra, ou ainda os direitos relativos a presos de guerra. Nesse quadro, a cultura e o saber jurídico eram essenciais para a diplomacia, fato que ajuda a compreender o destaque recebido por Rui Barbosa na defesa do princípio da igualdade entre as nações, contestando o entendimento de que a força poderia originar direitos. Nesse sentido, suas intervenções foram de notável importância para a criação e para a conformação do que viria a ser a Corte Permanente de Arbitragem e a Corte Internacional de Justiça que haviam sido temas de debate desde a Primeira Conferência de Paz da Haia (1899).

O período de pouco mais de uma década que separa a Segunda Conferência da Haia (1907) e o fim da Primeira Guerra Mundial (1919) trouxe para as relações internacionais e para a prática diplomática mudanças notáveis. As concepções da era vitoriana baseadas no valor do Direito e na centralidade do conceito de soberania foram ultrapassadas por uma realidade muito mais complexa onde os interesses nacionais passaram a não ser coincidentes com as fronteiras, extrapolando e interagindo com a política e com a economia de outros países. A Liga das Nações emergiu nesse quadro e constituiu a primeira experiência real desse novo multilateralismo, assentado muito mais na política internacional do que no Direito Internacional. A decisão de criar uma nova organização internacional (ONU) ao invés de reativar a Liga das Nações, em larga medida, retrata o fato de que a experiência da Liga das Nações não fora capaz de realizar com sucesso essa transição.

Dentro desse novo multilateralismo, o peso e as características da nação como ator no quadro das relações internacionais tornou-se parte integrante da prática diplomática. O Direito Internacional, embora tenha continuado a ser uma base importante para as ações e para as decisões das instâncias multilaterais, passou a conviver com outros elementos que emergiram como fatores decisivos. No novo multilateralismo, as dimensões econômicas e políticas ganharam espaço como condicionantes que não podem ser deixadas de lado. Além disso, como já foi destacado, o mundo tornou-se muito mais integrado inclusive em termos de interesses que, na maioria das vezes, transcendem as fronteiras formalmente demarcadas. Com efeito, na esfera do Direito discute-se e decide-se de acordo com normas, tratados e princípios legais reconhecidos. Na política internacional a prática diplomática tradicional baseada no Direito Internacional incorporou o conceito de “negociação”, que é sempre política e que deve tentar conciliar interesses legítimos, mas frequentemente contraditórios.

Esse é o lado do multilateralismo que torna fundamentais elementos como a liderança, o poder e, principalmente, a disponibilidade de recursos. É o que explica a construção da ordem internacional depois da Segunda Guerra Mundial cujos regimes, em sua maioria, foram construídos sob a liderança dos EUA que era a única nação capaz de prover recursos em larga escala. No sentido oposto, também ajuda a explicar porque arranjos como o MERCOSUL e a OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica) jamais desempenharam papel de destaque como instrumentos de construção da ordem na região e jamais tiveram qualquer chance de ganhar relevância internacional, uma vez que o país líder desses arranjos – o Brasil – jamais demonstrou disposição suficiente para liderar iniciativas e fornecer os recursos necessários para esses arranjos[13]. Na realidade, desde a redemocratização as relações exteriores como um todo jamais foram reconhecidas como prioridade dos governos brasileiros. A tradição de uma nação voltada para si mesma foi mantida pelos sucessivos governos, independentemente do partido político ao qual se filiasse o governante. Com a globalização, diferentemente do que ocorreu com as principais economias do mundo, no Brasil a ideia de um mundo cada vez mais integrado continuou sendo apenas uma figura de retórica política. Para o resto do mundo, os interesses nacionais tornaram-se fortemente integradas com os interesses de outras nações. Com efeito, no Brasil, em matéria de relações exteriores os sucessivos governos preferiram manter o velho padrão de mercado e de produto definidos nacionalmente. Assim, em instâncias multilaterais, jamais a diplomacia foi além da retórica política.

Uma das razões que podem ajudar a explicar esse padrão de desinteresse pela prática de uma diplomacia ativa pode ser vista no fato de que, ao longo dos anos que se seguiram ao fim dos governos militares, os recursos orçamentários foram sendo, gradativamente, orientados em sua quase totalidade ao pagamento dos gastos com despesas de autoridades e de uma burocracia pública cada vez mais pesada e menos eficiente, produzindo uma versão original e modernizada do velho patrimonialismo de outros tempos[14]. Esse conceito interpreta a condição de um Estado em que os limites entre os recursos públicos e privados são indistintos, ou seja, os recursos do Estado se confundem com o patrimônio dos ocupantes dos cargos de poder. Nos últimos anos, cerca de 95% de toda a arrecadação pública tem sido gasta com as folhas de pagamento do funcionalismo público, com o pagamento de inativos, pensionistas e aposentados e até mesmo para custear partidos políticos e suas campanhas eleitorais. Com os 5% restantes, os governos precisam custear as despesas com água e energia elétrica, com a limpeza, a manutenção e a segurança dos edifícios e das instalações públicas. O resultado dessa realidade contábil é que, para produzir e executar políticas públicas (inclusive relações exteriores) os recursos só podem vir da capacidade de endividamento dos governos de plantão.

Em suma, a viabilidade de organizações como o MERCOSUL e a OTCA dependiam – por razões econômicas, demográficas e políticas – diretamente da liderança e, consequentemente, dos recursos que os governos brasileiros poderiam aportar a esses arranjos. Uma possibilidade que jamais teve qualquer chance efetiva em um ambiente político de um Estado francamente dominado pelo corporativismo. Na realidade, não se afigura exagero o entendimento de que, por natureza, o Estado patrimonialista é refratário a qualquer “política de Estado”, pois toda política de Estado tem a incômoda característica de buscar beneficiar tão somente o “bem comum” e, além disso, geralmente o horizonte de tempo é o longo prazo e não as próximas eleições. A política externa, por sua vez é, por natureza, um domínio da política de Estado, não sendo um simples acaso ou escolha que, nos Estados Unidos, desde sua formação como nação independente, o responsável pelas relações exteriores é chamado de “Secretário de Estado”.

[1] Ensaio escrito como texto de suporte para o minicurso sobre “O Retorno do Multilateralismo” no VI Encontro de Pesquisa em Relações Internacionais, organizado pelo PET-RI da UNESP-FFC (21/Jan/2022).

[2] Professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília.

[3] O conceito de regimes internacionais ganhou forma definida no início da década de 1980, sendo entendida como um conjunto de princípios, normas, regras e processos decisórios vigentes e aplicados de forma cooperativa pelos Estados Nacionais dentro de um campo específico das relações internacionais (S. D. KRASNER, International Regimes, Cornell University Press, 1982).

[4] A teoria dos ciclos de Nicolai Kondratiev (1926) baseou-se em estudos estatísticos das economias americana, britânica e francesa que contrariavam a interpretação oficial da URSS do colapso inevitável do capitalismo. Mais tarde, Schumpeter recuperou a obra de Kondratiev e acrescentou os argumentos do papel do empreendedor e da tecnologia.

[5] O destino da Segunda Guerra Mundial foi selado com a realização dos encontros do Big Three (EUA, URSS e Grã-Bretanha) em Teerã (dezembro/1943), Yalta (fevereiro/1945) e em Potsdam (julho/agosto/1945). Roosevelt entendia que a paz deveria ser construída a partir dos “Quatro Gendarmes” (EUA, URSS, Grã-Bretanha e China). Cada “gendarme” seria responsável por sua área de influência geopolítica. Em 1945, o sistema colonial britânico ainda incluía países como a Índia.

[6] Estimulado pela guerra fria, o Plano Marshall foi lançado em 1947 e, em cinco anos, apenas em recursos públicos, forneceu à Europa mais de US$ 25 bilhões.

[7] Um dos maiores fundos de investimento privado é o grupo Blackrock Inc. Fundado em 2008, os clientes são governos, empresas, fundações, universidades e também indivíduos que poupam para a aposentadoria futura e para educação dos filhos no futuro. Apenas a PNC Financial Services, que tem 23,6 % da Blackrock, administra cerca de US$ 7,4 trilhões em ativos financeiros.

[8] TRIFFIN, R. The Evolution of the International Monetary System: Historical Reappraisal and Future Perspectives. Essays in International Finance n.12, 1964. Princeton University Press, 1964.

[9] Vale lembrar que os recursos do FMI eram provenientes das cotas a serem pagas pelos países-membros, isto é, justamente pelos países endividados, que necessitavam de recursos.

[10] Esse episódio é bem retratado no livro O Brasil e a Liga das Nações. 1919-1926, de autoria de EUGÊNIO VARGAS GARCIA (Imprenta/UFRGS/FUNAG, 2000).

[11] BELA BALASSA (1928-91), nascido na Hungria, notabilizou-se como professor da Johns Hopkins University e seu livro The Theory of Economic Integration (Routledge, 1962) foi uma obra bastante influente em seu tempo.

[12] Muitos estudiosos das relações internacionais ofereceram reflexões sobre a dinâmica dos regimes internacionais. Na obra seminal sobre regimes internacionais, organizada por S. D. KRASNER International Regimes (Cornell University Press, 1983), ver especialmente os capítulos escritos por ORAN YOUNG, ARTHUR STEIN e ROBERT KEOHANE.

[13] O contraste é enorme entre as dimensões do Brasil em relação aos demais países-membros do MERCOSUL. Em termos de população e do PIB, a disparidade também é muito grande. Em relação à OTCA, também o Brasil representa bem mais do que 50% da região e, além disso, também bem mais da metade da área contemplada pelo Tratado encontra-se em território brasileiro.

[14] O conceito foi difundido por Max Weber e vários estudiosos desenvolveram interpretações do Estado patrimonialista no Brasil (Raymundo Faoro, Victor Nunes Leal, Ricardo Vélez Rodrigues, entre outros).

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