Internet, Árvores e a Floresta

Por Carlos Baigorri*, Fabio Lucio Koleski** e Mozart Tenorio Rocha Junior***

Os resultados da pesquisa TIC Domicílios 2021, divulgados em junho de 2022 pelo Centro Regional de Estudos, para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br) trazem, ao menos, duas constatações para quem analisa a regulação dos serviços de telecomunicações no Brasil.

A primeira, mais óbvia, é que nossa população está cada vez mais conectada e que as disparidades regionais e sociais no acesso à Internet têm diminuído ao longo dos anos, o que aponta para um acerto das políticas regulatórias.

A segunda, menos óbvia, aponta para o atual paradoxo de nossa regulação: as atividades mais usadas na Internet hoje em dia são aquelas possibilitadas por aplicativos de trocas de mensagens de texto, de conversas por voz e de acesso a vídeos. No fundo, são funcionalmente muito semelhantes àquelas que o consumidor já poderia ter acesso nos tradicionais serviços de telecomunicações, como a telefonia ou a TV por assinatura. A diferença é que, embora suportadas por serviços de telecomunicações, são praticamente inalcançáveis pelo nosso quadro normativo.

Comecemos pela boa notícia da expansão do acesso. Em 2021, segundo a pesquisa, 81% dos domicílios brasileiros tinham acesso à Internet, contra 58% em 2015. Aprofundando os números, vemos também que o acesso deixou de ser uma atividade principalmente urbana. Em 2015, a diferença entre as parcelas dos domicílios urbanos com internet e a parcela dos domicílios rurais com acesso à rede era de 29 pontos percentuais (63% dos domicílios urbanos contra 34% dos domicílios rurais). Em 2021, essa diferença caiu para 9 pontos (82% dos domicílios urbanos, 73% dos rurais).

Essa expansão acompanhou o forte aumento da infraestrutura brasileira de telecomunicações. Nos últimos leilões de radiofrequências para telefonia móvel, os ganhadores das licitações se comprometeram com ousadas metas de cobertura, como a de instalar as tecnologias 3G e 4G em munícipios e distritos de pequeno porte. Como resultado, hoje, mais de 88% de nossa população reside em áreas cobertas por redes de quarta geração, perfeitamente capazes de oferecer Internet em alta velocidade.

Além disso, as redes de operadoras fixas para o acesso à Internet sofreram grande incremento. Entre 2015 e 2021, segundo dados da Anatel, o número de acessos em banda larga fixa saltou de 25,5 para 41,7 milhões.  Em especial, cresceram os acessos em fibra óptica: ao fim de 2021, 26,1 milhões de acessos (62% do total dos acessos fixos) eram por meio de fibras ópticas, enquanto em 2015 esse número era de apenas 1,5 milhão (6% do total).

Assim como no caso das redes móveis, as escolhas regulatórias feitas pelo Estado também contribuíram para o a expansão da infraestrutura e da oferta dos serviços de banda larga fixa. A Anatel, ao longo do tempo, removeu barreiras à entrada para prestadores de pequeno porte, simplificando e barateando as licenças para o serviço. Em paralelo, atuou de forma a dinamizar o mercado atacadista de acesso à Internet, tornando mais barato e fácil para o pequeno provedor contratar os recursos necessários para a venda das conexões ao consumidor final. Como resultado, metade do mercado de Internet fixa hoje está nas mãos de milhares de prestadoras de pequeno porte, pulverizadas nos municípios dos mais diferentes portes.

Os dados da TIC Domicílios 2021 demonstram, enfim, que a regulação brasileira das telecomunicações, gestada há um quarto de século, durante o processo de privatização do setor e quando o desafio ainda era conseguir uma linha de telefone fixo (algo tão escasso e caro que entrava como bens a declarar no imposto de renda da pessoa física), conseguiu cumprir o desafio para o qual foi criada. Hoje a infraestrutura de redes é robusta e geograficamente disseminada. Há competição entre os fornecedores. E os serviços são acessíveis à enorme parcela da população brasileira.

Já quando a pesquisa TIC Domicílios explora as atividades realizadas na Internet pelos brasileiros, seus resultados indicam, por exemplo, que 93% dos usuários usaram a rede para enviar mensagens de texto. Já 82% conversaram por chamada de voz ou vídeo. E 82% assistiram a vídeos, programas ou séries. Com exceção da chamada de vídeo, ou de aplicações natas da Internet, como as redes sociais (usadas por 81% dos brasileiros com acesso à Internet), as demais funcionalidades – envios de mensagens, chamadas de voz, acesso a vídeos – são típicas de serviços de telecomunicações que vêm sendo regulados há décadas no Brasil e no mundo.

Neste ponto, cabe uma pequena explicação sobre como se regulam as telecomunicações e a Internet no Brasil. A Anatel – seguindo o previsto na Lei Geral de Telecomunicações, publicada em 1997 – tem a competência para expedir licenças, criar regras e fiscalizar seu cumprimento pelas empresas que operam serviços de telecomunicações. De forma resumida, há quatro principais tipos de serviços de telecomunicações: a telefonia fixa (Serviço Telefônico Fixo Comutado), a telefonia móvel ou celular (Serviço Móvel Pessoal) – o que proporciona, além de voz e mensagens, também o acesso à Internet móvel –, a TV por Assinatura (Serviço de Acesso Condicionado) e o acesso à Internet em banda larga fixa (Serviço de Comunicação Multimídia).

Para estes serviços, a Anatel formulou uma série de regras, que vão desde a necessidade de cumprimento de padrões mínimos de qualidade e chegam a questões relacionadas ao relacionamento com o consumidor. Incluem, também, normas técnicas necessárias para que o setor, como um todo, funcione: padrões de numeração para a telefonia fixa e móvel, padrões para que as redes de uma operadora consigam “conversar” (ou interconectar) com a rede de outra, normas para evitar o abuso de poder econômico e por aí vai.

Já as aplicações que correm sobre a Internet não fazem parte do escopo regulatório brasileiro, mesmo que, muitas vezes, tenham a mesma funcionalidade ao consumidor final que os serviços prestados sob licença e altamente regulados. Estão, é claro, sujeitas à legislação brasileira, como qualquer atividade econômica realizada no país. Mas não existe um interlocutor estatal único ou um órgão que consiga acompanhar, em seu todo, este ambiente cada vez mais essencial ao dia-a-dia do brasileiro.

No início desse ano, o Tribunal Superior Eleitoral determinou à Anatel que fosse bloqueado o acesso a um aplicativo de mensagens com dezenas de milhões de usuários no Brasil, mas que não contava com sede ou representante jurídico no país. Tal ordem foi dada após diversas comunicações anteriores do tribunal com a empresa, que demandavam o fornecimento de informações sobre usuários e também o bloqueio de alguns perfis suspeitos de práticas de crimes. Como a própria agência reguladora não tem poder sobre o bloqueio de acessos aos servidores na Internet, retransmitiu o comando judicial aos milhares de provedores de acesso espalhados pelo país. Em poucos dias, após a mudança de postura da empresa que explora o aplicativo, a ordem de bloqueio foi suspensa pelo Tribunal, mas a lacuna regulatória ficou evidente.

O próprio fato de o aplicativo ter dezenas de milhões de usuários no país e ter despertado a ação de um Tribunal Superior demonstram, por si, a sua importância para a sociedade brasileira. Mas qual órgão de regulação das atividades econômicas acompanha a sua ação, sabe sobre sua atividade, tem competência para entrar em contato com ele? Ou, por outro lado, se o provedor de aplicativo precisar entrar em contato com o Estado, em que porta deve bater?

Para além das dúvidas, existem também assimetrias. Nossa legislação faz, por exemplo, com que serviços funcionalmente semelhantes, como o fornecimento de canais lineares por assinatura via Internet (IPTV), seja livre de quaisquer obrigações regulatórias. Enquanto que a transmissão dos mesmos canais lineares, com o mesmo conteúdo, só que nas redes de telecomunicações dedicadas de TV por assinatura (TV a Cabo ou via satélite), sejam pesadamente reguladas.

Do mesmo modo, os provedores das redes físicas que possibilitam o tráfego e a conexão à Internet estão submetidos a uma série de regras que impedem o abuso de poder econômico e as práticas anticompetitivas, entre outras obrigações regulatórias. Que, no fim das contas, visam promover a competição e remover barreiras à entrada. Já no caso das empresas de Internet, não existem regras específicas que permitam aos atores do setor saberem o que podem e o que não podem fazer, embora, em várias ocasiões, no Brasil e no mundo, as autoridades da competição já tenham sido acionadas para julgar denúncias de condutas anticompetitivas.

E quais seriam as soluções para superarmos essa situação de assimetria e de lacunas regulatórias? Certamente não pode haver a imposição de exigências demasiadas, como obrigar as empresas de Internet a obter uma outorga do estado brasileiro para operar aqui. Também não é o caso de criar uma série de leis e regulamentos detalhados. Muito pelo contrário – o caminho da regulação responsiva e baseada em evidências, que já vêm sendo trilhado por alguns reguladores brasileiros, como a Anatel – tem se demonstrado muito mais eficientes do que o excesso de controle e de carga regulatória.

Em diversas nações há intenso debate legislativo e regulatório sobre os mercados digitais – e eles começam, em grau menor, a existir no Brasil. As soluções possíveis são várias. Mas, antes mesmo de encontrá-las, há um desafio anterior para os reguladores brasileiros: adotar uma visão cada vez mais ampla. Conseguir entender que operação de redes físicas de telecomunicações, prestação de serviços de telefonia celular ou de acesso à Internet fixa, aplicações nativas da Internet, infraestruturas de armazenamento e processo na nuvem, entre tantas outras atividades econômicas, são interdependentes entre si. Influenciam umas às outras. E funcionam como um verdadeiro sistema – ou ecossistema digital, como vem sendo chamado.

Felizmente, diversos órgãos estatais têm acumulado conhecimentos sobre conflitos e problemas típicos do mundo digital, tais como a Anatel, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o Cade. Para além deles, o Gabinete de Segurança Institucional tem atuado fortemente em questões de cibersegurança, e o Comitê Gestor da Internet vem definindo os princípios e garantindo os padrões técnicos para uso da rede há pelo menos duas décadas.

Cada um desses atores, contudo, por suas competências legais, consegue apenas enxergar determinado aspecto do que vem ocorrendo na economia digital – e aprofundar a interlocução entre tais atores, ou buscar a criação de novas configurações regulatórias que possibilitem a cada uma dessas instituições, e ao Brasil por consequência, ter a capacidade de enxergar não apenas uma das árvores de cada vez, mas sim e simultaneamente, a floresta digital como um todo.

Carlos Baigorri é presidente da Anatel

** Fabio Lucio Koleski é especialista em Regulação da Anatel

*** Mozart Tenorio Rocha Junior é especialista em Regulação da Anatel