Por que o Brasil não utiliza as reservas internacionais para financiar investimentos públicos em infraestrutura?

Um gargalo importante para o crescimento da economia brasileira é o baixo nível de investimento em infraestrutura. Segundo Cláudio Frischtak[1] o Brasil precisa investir em infraestrutura entre 5% e 7% do PIB, ao longo de 20 anos, para atingir o padrão de crescimento da Coréia do Sul. Mas o País tem investido pouco mais de 2% do PIB. Por isso, é preciso encontrar um meio de impulsionar tais investimentos.

Porém, usar as reservas internacionais para financiar esses investimentos não é uma boa opção. Isso equivaleria, em última instância, a financiar os gastos por meio de endividamento público. Financiar investimentos com endividamento não é, a princípio, uma opção ruim. Mas fazê-lo por meio do uso das reservas internacionais geraria efeitos colaterais indesejáveis: no curto prazo, haveria valorização da moeda nacional em relação ao dólar. Isso geraria impacto negativo sobre as exportações e sobre a competitividade das indústrias nacionais em relação a produtos importados. Em ambos os casos haveria perda de empregos no país. No médio prazo haveria mais inflação.

Pode-se fazer investimento público via endividamento do Tesouro sem necessidade de se mexer nas reservas internacionais e sem provocar esses efeitos colaterais indesejados.

Para entender essa questão, vamos partir de uma constatação básica: o setor público brasileiro tem déficit nas suas contas. Ou seja, gasta mais do que arrecada. Um indivíduo que, todo mês, gaste mais do que recebe em salários não pode acumular poupança na sua conta bancária. Da mesma forma, o governo não pode acumular mais de R$ 200 bilhões em poupança se não arrecada o suficiente para pagar as contas do mês.

De onde, então, vem o dinheiro para comprar as reservas internacionais? Vem de endividamento público. O setor público brasileiro toma dinheiro emprestado no mercado financeiro nacional para comprar as reservas internacionais. Logo, essas reservas não constituem uma “riqueza legítima” acumulada pelo governo. Elas são, simplesmente, a contrapartida de uma dívida. Se o governo gastar o dinheiro das reservas para fazer investimentos, restará uma dívida a ser paga. Portanto, em última instância, os investimentos públicos em infraestrutura terão sido financiados por endividamento público.

Fica, então, outra dúvida: se o governo não consegue poupar (gastando mais do que arrecada), por que ele pega dinheiro emprestado para comprar reservas internacionais? Não é racional, para uma família que tem um buraco mensal em seu orçamento, pegar dinheiro emprestado e colocá-lo na poupança. Logo, não parece ser racional que o governo aja dessa forma.

Ocorre que o governo compra reservas internacionais com dois outros objetivos: evitar que o real se valorize excessivamente em relação ao dólar (e demais moedas internacionais) e garantir que o Brasil tenha uma reserva de dólares para fazer suas compras no exterior.

Basicamente, se o real se valorizar demais os produtos brasileiros ficarão caros no exterior, o que prejudica nossas exportações. Se os exportadores perdem mercado, haverá redução na oferta de emprego nas empresas brasileiras dedicadas à exportação. Por outro lado, os produtos importados ficam baratos em relação àqueles produzidos no Brasil. As empresas que produzem no Brasil passam a gerar menos empregos.

Um outro motivo para se acumular reservas em dólares é que se faltarem dólares disponíveis no Brasil, os brasileiros não terão acesso ao meio de pagamento normalmente utilizado para fazer compras no exterior. Mesmo que os brasileiros tenham reais em mãos para fazer compras, eles não poderão adquirir mercadorias importadas, pois os reais não são aceitos como meio de pagamento na economia internacional. Logo, o acúmulo de reservas internacionais também funciona como um “seguro”, pois representa uma reserva de dólares para o caso de alguma crise econômica interromper o fluxo normal de dólares para o país.

Vejamos, agora, o que aconteceria se o governo resolvesse usar o dinheiro das reservas internacionais para financiar investimentos em infraestrutura no País. Para isso, ele teria que trazer os dólares que estão aplicados no exterior, convertendo-os em reais, para poder comprar cimento, ferro, asfalto, máquinas e pagar salários dos operários e engenheiros que farão as obras de infraestrutura. Logo, haveria forte entrada de dólares no País, fazendo com que o real se valorizasse.

Ora, se o governo acumula reservas justamente para evitar a valorização da moeda doméstica, trazer esses dólares para financiar investimentos no País significaria desistir da política de evitar tal valorização; com as consequências negativas sobre a oferta de emprego no país, como já descrito acima.

Um segundo efeito colateral seria o aumento do endividamento público líquido e, provavelmente, da inflação.

Quando o governo se endivida para comprar dólares ele ao mesmo tempo aumenta o seu passivo (pelo aumento da dívida interna) e o seu ativo (pela compra de dólares). Isso significa que a dívida líquida (passivo menos ativo) não se altera.

Se o governo decidir vender as reservas (um ativo) para financiar uma despesa (o investimento em infraestrutura) a dívida líquida vai aumentar, pois o governo terá se desfeito de um ativo (as reservas)  e o seu passivo (a dívida pública) terá ficado do mesmo tamanho.

Mas se os investimentos em infraestrutura representam, de fato, um ativo do Tesouro, porque eles não são deduzidos para fins de cálculo da dívida líquida? Se isso fosse feito, não haveria aumento na dívida. Ocorre que os investimentos em infraestrutura não têm a mesma liquidez que títulos do Tesouro ou dinheiro. Da mesma forma que se diz que um indivíduo se endividou para comprar um carro, diz-se que o governo se endividou para fazer obras. O indivíduo até pode argumentar que a sua situação patrimonial não mudou, pois o valor do carro compensa o valor da dívida. Mas sabe-se que o carro se deprecia ao longo do tempo (assim como os investimentos do governo) e que não tem liquidez imediata (se o indivíduo precisar vender o carro para pagar a dívida, terá dificuldade ou precisará aceitar um desconto no preço).

Aumentar a dívida para fazer investimentos não é necessariamente ruim. É um recurso legítimo. Assim como o carro presta um serviço ao indivíduo, o investimento em infraestrutura presta um serviço ao País (facilitando o crescimento econômico e gerando mais renda). Por isso, se o valor da nova renda que o investimento em infraestrutura trouxer para o País for maior do que os juros a serem pagos sobre a dívida, vale a pena fazer o investimento.

Mas o fato concreto que importa ressaltar é que o uso das reservas internacionais não é uma solução mágica para expandir os investimentos em infraestrutura. Em última instância, estará havendo um aumento do endividamento público para fazer tais investimentos. Logo, seria mais fácil financiar os investimentos diretamente via emissão de títulos, sem a complicação de se mexer com as reservas.

Se não traz nenhuma vantagem, esse procedimento pode trazer muitas desvantagens. A primeira delas, a valorização do real, já foi analisada acima. A segunda possível desvantagem é o aumento da inflação.

A conversão das reservas internacionais em reais e o uso desses reais para a compra de cimento, mão-de-obra, ferro e demais insumos necessários aos investimentos em infraestrutura significará um aumento da quantidade de dinheiro nas mãos dos indivíduos que venderem esses insumos ao governo. Os indivíduos que obtiveram emprego ou aumento de salário devido à maior demanda do governo por engenheiros e trabalhadores vão consumir mais; as empresas que executaram contratos de construção vão aplicar seus lucros em novos investimentos. E esse estímulo ao consumo tende a  ressionar os preços, elevando a inflação.

Se, em vez de financiar os investimentos públicos repassando reservas internacionais ao setor privado, o governo tivesse reduzido os seus gastos correntes e formado uma poupança, os efeitos expansionistas acima descritos (aumento de consumo pelas empresas e famílias) seriam compensados pela redução do consumo do governo. E os preços não aumentariam, pois o que o setor privado consumisse a mais seria compensado por um consumo menor do governo.

Em resumo, usar reservas internacionais para financiar investimentos públicos em infraestrutura não é um passe de mágica. Tal operação significa que, no caso brasileiro, cujo orçamento já é deficitário, esses investimentos serão financiados por aumento da dívida líquida do setor público.

Como desvantagem adicional, aumenta a vulnerabilidade do País a uma eventual crise de escassez de divisas internacionais: a venda das reservas significa abrir mão de um seguro em termos de liquidez internacional.

Pode-se até argumentar que as reservas internacionais passaram do montante necessário para garantir o acesso dos brasileiros a moedas de curso internacional e que custa caro manter as reservas (pois a sua remuneração, ao se aplicar os dólares no mercado financeiro internacional, é mais baixa do que os juros que o governo paga ao tomar empréstimos no País). Mas essa é uma outra discussão, que se refere ao que fazer na gestão dos dólares que entram no País. E que nada tem a ver com o outro problema, que é o de como financiar os investimentos em infraestrutura.

Para solucionar o problema da falta de investimentos em infraestrutura é preciso, em primeiro lugar, reduzir os gastos correntes do governo, para sobrarem mais recursos a serem investidos. Em segundo lugar, é preciso criar condições legais favoráveis ao investimento privado em infraestrutura, mediante privatizações e concessões de serviços públicos (aeroportos, estradas, ferrovias, portos, etc.). Isso abre uma ampla agenda: fortalecimento das agências reguladoras, superação do preconceito contra privatizações, ampliação das garantias contratuais dos investidores privados (para que o governo não confisque seus investimentos), melhoria da capacidade do governo para planejar investimentos, etc.


[1] Frischtak, C. O investimento em infraestrutura no Brasil: histórico recente e perspectivas. Pesquisa e Planejamento Econômico, 38(2):307-48, ago. 2008.