Os estados e municípios devem receber royalties de petróleo?

Ao final de 2010 o Congresso Nacional aprovou um conjunto de leis conhecido como “novo marco regulatório do petróleo”, que é um conjunto de regras a serem seguidas na exploração do petróleo recém-descoberto na camada pré-sal[1]. O único ponto que restou pendente foi o critério de divisão dos royalties recebidos pelo setor público entre estados e municípios. Há uma disputa em que, de um lado estão os estados e municípios que se situam em frente aos campos marítimos de petróleo e que se julgam no direito de receber a maior parte dos recursos, e de outro lado estão os demais estados e municípios, que pleiteiam uma distribuição equitativa entre todos. Para entender essa disputa, é importante responder, primeiro, à pergunta que dá título ao texto: por que os estados e municípios deveriam receber rendas derivadas da exploração de petróleo?

Vejamos o que são os royalties. Eles são um pagamento mensal feito ao governo pelas empresas que exploram petróleo. No Brasil cobra-se, também, a chamada “participação especial”, que é uma espécie de tributação sobre o lucro, incidente no caso dos poços de alta produtividade. A primeira justificativa para o pagamento de royalties e participação especial  (doravante chamaremos os dois tipos de pagamento apenas de royalties, para simplificar) é que o petróleo é uma riqueza de propriedade do Estado, que deve ser remunerado pela sua extração. Colabora o fato de que é grande a diferença entre o custo de extração do petróleo e o seu preço no mercado internacional. A alta margem de lucro permite que o governo se aproprie de parte dos ganhos sem que a atividade deixe de ser atrativa para as empresas exploradoras.

O segundo ponto é que esses recursos são finitos: o petróleo que se extrai da terra hoje não estará disponível para as gerações futuras. Por isso, a cobrança de royalties e outras compensações financeiras pagas pelos extratores de recursos naturais ao governo (existem compensações similares na extração mineral e no uso de recursos hídricos) têm o papel fundamental de equilibrar os interesses da geração presente e das gerações futuras. Trata-se de impor um custo adicional à extração dos recursos hoje, para dosar o ritmo de seu consumo e permitir que as gerações futuras também disponham de recursos naturais.

Em geral, são apontadas três justificativas para que os estados e municípios participem das receitas de royalties. A primeira está associada à exploração de um recurso que pertence ao ente federativo. Como no Brasil os recursos do subsolo pertencem à União, essa justificativa não se aplica.

A segunda justificativa é que os royalties pagos a municípios e estados servem para compensá-los pelos danos ambientais e sociais (atração excessiva de mão-de-obra para a região, com os associados problemas de criminalidade, desemprego, etc), além de garantir condições à expansão da urbanização necessária para receber mais população e mais empresas ligadas à exploração de petróleo.

A terceira é que os estados e municípios produtores poderiam utilizar os royalties para construir uma base econômica que preparasse a localidade para quando as jazidas se esgotarem, evitando o esvaziamento econômico da região após o fim da exploração.

Porém esses argumentos não parecem fortes para o caso brasileiro. Primeiro porque, pelas regras atualmente vigentes (que valem para os poços de petróleo que não estão no pré-sal), há um descasamento entre os municípios beneficiados e a efetiva localização e impacto da extração de petróleo. Parte relevante do royalty é atribuída aos municípios que estejam mais próximo do poço situado na plataforma continental, sem que, necessariamente, o petróleo extraído daquele poço seja processado, embarcado ou gere qualquer impacto adverso de ordem econômica ou ambiental no município. Esse critério, conforme registra (Serra 2006, p. 213) “não tem associação com o impacto local da atividade de exploração de petróleo e acaba por tornar alguns municípios privilegiados recebedores de um ‘maná”: recebem dinheiro sem ter o correspondente impacto negativo. Ainda segundo Serra (2006, p. 217), no caso dos municípios, apenas 26% do total dos royalties referentes à produção terrestre de petróleo guardam alguma relação com a intensidade do impacto local da atividade de exploração, com esse percentual caindo para 8,75% no caso da exploração em plataforma continental.

Adicionalmente, a própria atividade petrolífera já estimula bastante a atividade local, aumentando substancialmente a base de arrecadação tributária. No que diz respeito aos impactos ecológicos, a distância entre os campos do pré-sal e a costa, de centenas de quilômetros, torna praticamente impossível associar qualquer dano ecológico ao município confrontante: o município efetivamente afetado dependerá muito mais das correntes marítimas e de outros fatores geológicos do que da proximidade do plataforma de exploração.

Outro problema fundamental é que os critérios de partilha atuais geram grande concentração dos recursos em alguns poucos municípios. De fato, de acordo com Serra (2006, p. 228), 24,3% das rendas petrolíferas devidas a municípios são pagos a um único município: Campos de Goytacazes-RJ e os dez maiores beneficiários dessas rendas detêm 64% do total distribuído.

Some-se a isso o fato de que os valores transferidos são muito elevados: a participação dos estados e municípios produtores, dependendo do tipo de poço explorado, fica entre 50% e 90% do total dos royalties. Mesmo antes de os poços do pré-sal começarem a produzir, já ocorre, hoje, com a imposição de royalties sobre os campos em atividade, uma transferência a estados e municípios da ordem de R$ 12,1 bilhões anuais[2].

Municípios que recebem muito dinheiro de royalties sem ter que, ao mesmo tempo, usar esse dinheiro para mitigar os problemas gerados pela exploração do petróleo, acabam atraindo população, que vem em busca de se beneficiar desse dinheiro. O argumento de que o dinheiro do royalty é para compensar o aumento de população tem que ser virado de ponta-cabeça: é o dinheiro do royalty que atrai população.

Estudo recente[3] mostra que, no caso brasileiro, não se detecta um impacto positivo e significativo da exploração de petróleo nas demais atividades econômicas municipais. Logo, a população não teria sido atraída por novos empregos no setor privado, decorrentes da atividade petrolífera. Os autores mostram que o principal impacto econômico ocorre via orçamento público, com a entrada dos royalties nos cofres locais. Seria, então, de se esperar uma expansão dos serviços públicos municipais. Mas os pesquisadores não encontram tal efeito. Aparentemente o dinheiro é gasto, mas não produz efeitos em termos de aumento de serviços públicos prestados ou de qualidade de vida local. Pode-se concluir que boa parte do dinheiro é aplicada de forma improdutiva ou é desviada.

Existem evidências a esse respeito na literatura. Sousa e Stosic (2003)[4], em um estudo que compara a eficiência dos municípios brasileiros, mostram que há grande concentração de municípios que são beneficiários de royalties no grupo dos menos eficientes. Mendes (2005)[5] mostra que os principais beneficiários de compensações financeiras relacionadas ao petróleo gastam entre 20% e 50% a mais que a média dos municípios brasileiros com a manutenção de suas câmaras de vereadores.

O que parece ocorrer é que, ainda que mal gasto, parte do dinheiro dos royalties continua circulando na área de influência econômica dos municípios beneficiados. Salários públicos elevados, despesas públicas improdutivas e desvios geram uma dinâmica econômica com baixo potencial de geração de riqueza futura, mas que é capaz de fomentar a demanda local por bens e serviços, como construção de residências, despesas no comércio, contratação de empregados domésticos, etc.

Em vez de os royalties representarem uma indenização aos municípios pela futura decadência econômica, quando não houver mais petróleo na região, eles criam uma dependência do município em relação a esses recursos no presente. Quando acabar a exploração do petróleo e os royalties secarem, esses municípios não terão construído nenhuma base sustentável para sua atividade econômica e irão, efetivamente, entrar em depressão econômica.

Manter esse modelo distorcido de distribuição de royalties, em um contexto em que os valores se multiplicarão devido à exploração do pré-sal, não parece ser uma boa idéia.

Por outro lado, também não nos parece aconselhável simplesmente dividir os recursos igualmente entre todos os municípios e estados. Se isso for feito, tal receita será mais um recurso a ser aplicado nos gastos correntes, sem perspectiva de que venham a ser adequadamente investidos em favor das gerações futuras.

Para ter uma aplicação eficaz dos recursos dos royalties é preciso fazê-lo pensando nas gerações futuras, que não terão a oportunidade de consumir o petróleo que se extrai no presente. Por isso, é recomendável que a receita financeira obtida com os royalties seja investida para gerar ativos capazes de impulsionar o crescimento econômico hoje e no futuro: infra-estrutura econômica, conhecimento científico, preservação ambiental.

Parte significativa das políticas geradoras de ativos em favor das gerações futuras diz respeito a ações típicas do Governo Federal. É a esse nível de governo que cabem as principais ações de investimentos em ciência e tecnologia, proteção ambiental e ampliação da infraestrutura (estradas, portos, aeroportos, etc.). É pequeno o papel que os municipais podem fazer nessas áreas; com os governos estaduais tendo algum espaço para atuar em tais áreas.

Há uma outra área de investimento nas gerações futuras, a educação, para a qual estados e municípios podem contribuir bastante. No entanto, seria importante criar mecanismos que garantissem a efetiva aplicação dos royalties nas escolas públicas estaduais e municipais.

Pelo exposto, seria interessante redesenhar a partilha dos royalties do pré-sal com base nos seguintes princípios:

  • reduzir significativamente a participação de estados e municípios na partilha, passando a utilizar tais recursos em programas federais de pesquisa e desenvolvimento de fontes alternativas de energia (lembrando que a liderança brasileira em biocombustível depende de investimento maciço em pesquisa no setor), programas de preservação ambiental e reforço das verbas para a educação pública;
  • os estados devem receber parcela superior à dos municípios, visto que têm maiores atribuições em áreas como preservação ambiental, ciência e tecnologia e infraestrutura;
  • a União, por sua vez, deve receber parcela superior à dos estados, tendo em vista o impacto relevante que as receitas do petróleo trazem sobre variáveis macroeconômicas, como demanda agregada e câmbio, e pela maior capacidade técnica de criar e gerenciar fundos que consigam preservar para as gerações futuras a riqueza do petróleo;
  • o eventual uso dos recursos no financiamento da educação provida pelos estados e municípios deve se dar por meio da elevação da dotação do Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), para garantir que o dinheiro venha a ser efetivamente canalizado para a educação;
  • participação adicional de estados e municípios nesses recursos, além das citadas acima, deve restringir-se ao suporte financeiro necessário para que eles expandam sua rede de serviços públicos em função do aumento de demanda decorrente das atividades de exploração; o que significa valores, por cidade, muito inferiores ao que se paga aos atuais principais beneficiários do sistema;
  • impor um teto para a participação percentual de cada município na partilha, para evitar o fenômeno dos “municípios milionários”, como é o caso de Campos de Goytacazes-RJ e outros municípios da Bacia de Campos;
  • utilizar parte dos recursos atribuídos a estados e municípios para formar um fundo de estabilização, cujos recursos seriam utilizados em períodos de menor arrecadação ou para financiar investimentos em infraestrutura por meio de empréstimos aos próprios estados e municípios para financiamento de obras de infraestrutura.

Para ler mais sobre o tema:

Postali, F. (2002) Renda Mineral, divisão dos riscos e benefícios governamentais na exploração de petróleo no Brasil. Rio de Janeiro: BNDES, 120 p.

Serra, R.V. “Rendas Petrolíferas no Brasil: critérios de distribuição distorcidos induzem ineficiência do gasto”. In Gasto Público Eficiente: 91 Propostas para o Desenvolvimento do Brasil. M. Mendes (Org.). Instituto Fernand Braudel/Topbooks, São Paulo, Brasil, 2006.

[1] Para uma discussão dessas leis ver, neste site, o texto “Qual a diferença entre regime de partilha e regime de concessão na exploração do petróleo?”, de Paulo Springer de Freitas.

[2] Fonte:  ANP http://www.anp.gov.br/?id=522

[3] Francesco Caselli e Guy Michaels Do oil windfalls improve living Standards? Evidence from Brazil . NBER Working Paper nº 15550. Disponível em http://www.nber.org/papers/w15550

[4] Sousa,M.C.S. e B. Stosic. “Technical Efficiency of the Brazilian Municipalities: Correcting Non-Parametric Frontier Measurements for Outliers. Working Paper nº 293. Departamento de Economia. Universidade de Brasília, 2003.

[5] Mendes, M. (2005) Capture of fiscal transfers: a study of Brazilian local governments. Economia Aplicada, v. 9, nº 3, p. 427-444.