Estabilidade Regulatória, Investimentos e o Novo Marco Legal de Saneamento

Por Katia Rocha*

O Novo Marco Legal de Saneamento, convertido na Lei 14.026 de 2020, trouxe como meta principal, a tão necessária e urgente universalização do saneamento básico no Brasil, que ainda conta com 35 milhões de pessoas sem acesso a água tratada e 100 milhões sem coleta de esgoto. Para tal, estabeleceram-se metas de universalização de 99% da população com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgotos até 2033.

Como referência comparativa, dados do Banco Mundial[1] mostram que apenas 48,7% da população Brasileira apresenta algum nível de coleta e tratamento de esgoto. Em países de renda média superior (classificação do Brasil segundo nosso PIB per capta) esse percentual é 57,8%, e, nos países membros da OCDE alcança 85%.

Fruto de intenso debate, desde 2018, envolvendo diversos agentes, tanto do setor público quanto privado, o Novo Marco percorreu inúmeros trâmites nos diversos poderes (executivo, legislativo e judiciário) até sua publicação em Lei em 2020. Seu objetivo principal concentra-se na universalização do saneamento, um problema de décadas do Brasil, incentivando parcerias e ampliação da participação privada, criando um ambiente regulatório mais homogêneo, com eficiência concorrencial via licitações públicas, com indicadores obrigatórios de performance e qualidade para os investimentos no setor.

O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) declarou em 2021sua validade, que foi questionada em diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, em decisão majoritária, com o colegiado concluindo que a nova regulamentação para o setor foi uma opção legítima do Congresso Nacional para aumentar a eficácia da prestação desses serviços e buscar sua universalização​, reduzindo as desigualdades sociais e regionais[2].

A iniciativa e promulgação do Novo Marco de Saneamento de 2020 foi bem recebida por diversos think tanks (BID, OCDE, Banco Mundial). A leitura do novo marco setorial, com incentivos de maior parceria do setor público e privado, foi entendida como um avanço na modernização do marco legal de PPP do Brasil[3].

Em volume de investimentos no segmento Água e Saneamento, setor público e privado investiram no total cerca de BRL15 bilhões em média ao ano na última década (grosso modo 50% cada)[4]. Em 2021, após o Novo Marco Legal, o setor privado contabilizou investimentos com cifras superiores a BRL 25 bilhões.

No entanto, de forma a atingir a meta de universalização proposta para 2033, estima-se que os investimentos necessários saltem dos atuais BRL 15 bilhões ano para cifras ao redor de BRL 60 bilhões ano[5]. Parcerias serão imprescindíveis!

No quesito regulação, um pilar essencial para as metas de universalização e de investimentos resilientes em infraestrutura, a qualidade e estabilidade regulatória é pré-requisito para alavancar investimentos em infraestrutura, em especial no segmento de Água e Saneamento em economias emergentes como é o caso brasileiro.

A qualidade regulatória abrange o fortalecimento constante das agências reguladoras, com autonomia, independência decisória, administrativa e financeira. Busca-se alcançar maturidade regulatória, transparência e segurança jurídica, baseadas em pilares técnicos e nas melhores práticas internacionais.

Há influência de características institucionais e regulatórias do país para a atração de investimentos, seja em números de projetos ou volume de investimentos direcionados a infraestrutura – PPI[6]. O maior protagonismo da qualidade e maturidade regulatória, para a alocação de capital privado no setor de infraestrutura nas economias emergentes, foi evidenciado após a crise financeira global de 2008.

De fato, estudos apontam que uma melhora regulatória que coloque o Brasil dentro da faixa observada dos países-membros da OCDE teria o potencial de alavancar o fluxo de investimentos em infraestrutura (PPI) em cerca de 1 – 1.6% do PIB a.a.[7] e aumentar o crescimento em 0.9% PIB a.a. no médio prazo[8]. Destaco, aqui, o efeito da estabilidade e a consistência regulatória; uma vez que, não apenas a posição atual do país em rankings regulatórios, mas também sua trajetória passada (tendência/médias móveis) estão associadas a maiores investimentos.

Percebe-se que o pilar regulatório é “complementar”, de fato, às políticas macroeconômicas e fiscais.

Houve certa melhora do Brasil em rankings internacionais relacionados à criação de ambientes propícios para o desenvolvimento de parcerias público-privadas (PPPs) eficientes e sustentáveis ​​em infraestrutura[9].Esse movimento, usualmente, não é instantâneo, apresenta uma inércia, e depende da constância e estabilidade, regulatória e institucional. Mais do que valores absolutos, e ruídos de curto prazo, a tendência de médio/longo prazo é fundamental.

Nesse sentido, mudanças frequentes em marcos legais já estabelecidos e debatidos por diversos agentes da sociedade, como é o presente caso do Marco Legal de Saneamento, prejudicam o ambiente de negócios, aumentam a incerteza e deterioram a percepção de qualidade regulatória, não apenas do setor envolvido, mas do país como um todo. Não condiz com a necessidade de priorização de investimentos no setor.

O Novo Marco trabalha nesta direção e eventuais mudanças que desconfigurem tal propósito e objetivo podem produzir alto custo econômico e social, com atrasos ainda maiores nas metas de universalização, e possíveis contágios em outros setores de infraestrutura.

Mais do que nunca, acredito que a divulgação de dados e evidências servem como ponto de atenção aos formuladores de políticas públicas, além de reforçar toda a agenda para um ambiente propício ao desenvolvimento das parcerias público-privadas (PPPs), aumentando a produtividade e o crescimento econômico e social.

Referências

  1. IFC (2021). Tapping into private finance for more resilient water systems. Disponível em: https://www.ifc.org/wps/wcm/connect/news_ext_content/ifc_external_corporate_site/news+and+events/news/private-financing-for-resilient-water-systems-in-brazil
  2. Infrascope (21/22). Disponível em: https://www.iadb.org/en/news/infrascope-launched-idb-and-economist-impact-shows-improved-regional-environment-ppps
  3. OCDE (2020). OCDE Economic Surveys: Brazil 2020. Disponível em: https://read.oecd-ilibrary.org/economics/oecd-economic-surveys-brazil-2020_250240ad-en
  4. OCDE (2022). Fostering Water Resilience in Brazil: Turning Strategy into Action. OECD Studies on Water. Disponível em: https://read.oecd-ilibrary.org/environment/fostering-water-resilience-in-brazil_85a99a7c-en#page4
  5. Rocha, K. (2020). Investimentos Privados em Infraestrutura nas Economias Emergentes: A Importância do Ambiente Regulatório na Atração de Investimentos. Texto para Discussão 2584. IPEA. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10217/1/td_2584.pdf
  6. Rocha (2021). Investimentos Privados em Infraestrutura e a Importância da Qualidade e Estabilidade Regulatória. Radar 68 IPEA. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11038/1/radar_68_investimentos_privados_em_infraestrutura.pdf
  7. Rocha (2021). Investidores Institucionais e o Financiamento da Infraestrutura: uma estimativa do volume de recurso em potencial para o Brasil. Disponível em: https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10555/1/td_2644.pdf
  8. World Bank (2022). Water Supply and Sanitation Policies, Institutions, and Regulation: Adapting to a Changing World—Synthesis Report. Disponível em: https://documents1.worldbank.org/curated/en/099015208242275252/pdf/P165586002283004a086e105a00d8430696.pdf
  9. World Governance Indicator. Disponível em: https://info.worldbank.org/governance/wgi/

* Katia Rocha é pesquisadora do IPEA. katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade da autora, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.