Regulação das relações de consumo no setor aéreo

Por Yuri Cesar Cherman* e Patricia Semensato Cabral**

I – Introdução

Com a expansão do transporte aéreo, que vem ocorrendo de maneira expressiva desde o início dos anos 2000, muito se questiona sobre a proteção do consumidor do serviço de transporte aéreo. Mas o que é proteger o consumidor no setor aéreo? Qual tipo de proteção o passageiro deseja? Mais supostos direitos significam mais proteção?

Para tratarmos sobre essas reflexões, devemos nos valer da ferramenta da análise econômica do direito, ramo do estudo jurídico que pressupõe a aplicação da teoria econômica para examinar as leis, instituições legais e políticas públicas. Historicamente, na tradição jurídica brasileira, os operadores do Direito não buscaram se aproximar de outras ciências sociais, menos ainda da economia ou da matemática[1]. No entanto, a interpretação dos fatos baseada na integração entre diferentes vertentes científicas propicia ao intérprete maturidade e profundidade analítica, visto que ele adquire uma maior capacidade de enxergar as situações de modo holístico.

Em palavras mais simples, precisamos abrir a mente e nos lembrar do mundialmente conhecido ditado popular segundo o qual não existe almoço grátis, ou seja, todos os pretensos benefícios que forem instituídos terão um custo, e alguém terá que arcar com esse custo.

Essa questão adquire ainda mais relevo no contexto econômico nos últimos anos, em que a aviação civil experimentou a maior crise de sua histórica com a pandemia de Covid-19, com reflexos que são sentidos até os dias atuais, visto que o volume de passageiros transportados ainda se encontra em níveis mais baixos do que no ano de 2019[2]. Não bastasse a necessidade de resguardo ao lar, decorrente da doença que estava em franca expansão – o que por si só já prejudicaria as operações –, a pandemia e a superveniente guerra Rússia-Ucrânia ainda trouxeram outros efeitos nefastos ao transporte aéreo nos últimos anos, sendo dignos de nota (i) a valorização do dólar perante o real (sendo que grande parte das operações aéreas são custeadas em dólar), (ii) a alta do preço do querosene aeronáutico em 122% desde 2019; (iii) e acrescente inflaçãodos últimos anos.

Recentemente, a Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC realizou uma pesquisa voltada aos passageiros, com o objetivo de avaliar quais fatores são preponderantes para eles quando compram um bilhete aéreo[3]. Pela pesquisa, os passageiros podiam apontar suas preferências, e o resultado não foi surpreendente ao revelar que o preço pago pela passagem aérea é o fator preponderante para os consumidores, sendo mais importante do que todas as outras possíveis variáveis envolvidas na aviação civil (tais como horários de voos, histórico de atrasos e de cancelamentos, espaços de assentos, programa de milhagem, valor cobrado pelo despacho de bagagem, entre outros).

Por esse motivo, como veremos no presente texto, a proteção regulatória dos passageiros do transporte aéreo deve se pautar em iniciativas voltadas à criação de um ambiente de negócios favorável aos bolsos dos consumidores. Além disso, é necessário que o Estado adote condutas estratégicas voltadas a garantir os direitos dos passageiros, coibir eventuais abusos dos prestadores de serviços, reduzir assimetrias de informação e estimular a competição por qualidade.

II – Atuação regulatória estratégica

Criação de um ambiente de negócios favorável

Do ponto de vista estratégico, promover a concorrência no setor aéreo tem um papel fundamental. Como cediço, o incremento da concorrência em setores econômicos traz consigo uma importante consequência, que é a competição das empresas pelas preferências dos consumidores, propiciando uma maior variedade de preços e de produtos ofertados.

O arcabouço normativo no Brasil passou, nos últimos anos, por importantes mudanças favoráveis à atração de novas empresas aéreas. Nesse sentido, temos, em primeiro lugar, a criação de uma agência reguladora com independência administrativa e autonomia decisória, o que contribui para um cenário de maior estabilidade e previsibilidade em relação às regras do jogo no setor. A mesma Lei que criou a ANAC garantiu também os regimes de liberdade tarifária e de oferta, que contribuíram para a expressiva expansão dos serviços aéreos no País. Podemos citar, ainda, a flexibilização de restrições à participação do capital estrangeiro em empresas aéreas, com a promulgação da Lei nº 13.842/2019, que alterou o Código Brasileiro de Aeronáutica.

Em âmbito infralegal, a ANAC vem adotando nos últimos anos diversas ações voltadas a promover a simplificação regulatória e a desburocratização, notadamente por meio do “Voo Simples”, programa que contempla dezenas de ações em curso na Agência, as quais são dinâmica e constantemente revistas para o  aprimoramento contínuo do sistema de aviação civil brasileiro[4].

Além disso, a Agência tem atuado com vistas a modernizar a aviação civil brasileira por meio de diversas iniciativas, tais como as concessões aeroportuárias, que já contemplaram dezenas dos principais aeroportos do Brasil, obrigando os concessionários à realização de investimentos relevantes em infraestrutura[5], à abertura do mercado a investimentos estrangeiros; à flexibilização das condições gerais do transporte aéreo, de modo a permitir a vinda de operadores aéreos com características operacionais diferentes; e à adoção de medidas de soft regulation[6]e de regulação responsiva.

Especificamente com relação a esse último ponto, em busca de uma atuação mais efetiva, a ANAC deu início, em 2020, ao denominado Projeto Prioritário “Regulação Responsiva”. Em síntese, a Agência tem buscado evoluir de um modelo essencialmente baseado em “comando e controle” para outro modelo baseado no estabelecimento de incentivos, na prevenção e na conformidade regulatória. Essa mudança de paradigma parte da constatação de que uma regulação exclusivamente baseada em “comando e controle”, no qual o regulado não tem incentivos para cumprir voluntariamente os requisitos postos pelo regulador, pode gerar diversas distorções, tais como: normas demasiadamente prescritivas; alto número de processos sancionadores e custos administrativos associados; pouca liberdade do regulador frente à diversidade de comportamentos dos regulados; e baixa efetividade das sanções aplicadas[7].

A adoção de um modelo responsivo naturalmente não implica renunciar à utilização de ferramentas punitivas, mas sim de utilizá-las quando essas alternativas se mostrarem estritamente necessárias. Trata-se, portanto, de ampliar o leque de ferramentas à disposição do regulador, que passa a recorrer tanto a instrumentos de persuasão quanto a penalidades, a depender do tema em questão.

Tais medidas de aberturado mercado e simplificação regulatória têm contribuído sistemicamente com o aprimoramento econômico do mercado e com os interesses dos consumidores da aviação civil.

Normatização

Os países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE e a União Europeia têm buscado adotar uma abordagem moderna e pautada nos princípios de better regulation, com o desígnio de buscar uma regulação mais transparente e baseada em evidências[8].

No campo da regulação das relações de consumo no transporte aéreo, o Brasil está bastante alinhado a essas diretrizes.A fim de estabelecer a proteção efetiva dos consumidores, de coibir possíveis abusos empresariais e de evitar eventuais assimetrias de informações, a ANAC prevê direitos, deveres e outras balizas inerentes à relação das empresas aéreas com os passageiros, notadamente por meio da Resolução nº 400/2016, que estabelece as Condições Gerais de Transporte Aéreo, e da Resolução nº 280/2013, que dispõe sobre procedimentos relativos à acessibilidade de passageiros com necessidade de assistência especial ao transporte aéreo. O rito de confecção das referidas normas seguiu os procedimentos das melhores práticas regulatórias, tais como a elaboração de análise de impacto regulatório e a realização de consulta pública.

Também em linha com as melhores práticas, a ANAC tem trabalhado na avaliação dos resultados regulatórios obtidos a partir das normas supracitadas, bem como na necessidade de modernização da regulação. Nesse sentido, encontra-se em revisão a Resolução nº 280/2013, com o objetivo de levar à efetiva implementação das atuais políticas públicas para acessibilidade no contexto do setor de transporte aéreo. 

Fiscalização e enforcement

Para além da edição de normas que estabelecem as balizas para os comportamentos de empresas e usuários, a efetiva proteção do consumidor pressupõe uma fiscalização eficaz, capaz de coibir comportamentos indesejados por parte dos regulados.

No Brasil, com base nos referidos normativos, a autoridade de aviação civil deve fiscalizar, induzir comportamentos aderentes, esclarecer incongruências e, inclusive, punir os entes regulados que se mostrem, em determinada conjuntura, avessos ao cumprimento das normas. Nesse sentido, especificamente no que diz respeito às relações de consumo, a ANAC adota uma fiscalização em âmbito coletivo, que consiste em avaliar sistemicamente as condutas das empresas, detectando eventuais desrespeitos reiterados a obrigações. A abordagem sistêmica traz consigo virtudes, tais como induzir a Agência a focar em problemas com maior potencial ofensivo contra uma coletividade de consumidores.

A fiscalização em âmbito coletivo da ANAC e a atuação dos órgãos de defesa do consumidor – os Procons – são complementares. Enquanto a primeira busca reprimir abusos que tenham potencial lesivo para a coletividade, a segunda é a via apta para o tratamento das demandas individuais que não venham a ser solucionadas mediante o contato direto entre fornecedor e consumidor.

É certo que cada uma dessas entidades tem autonomia dentro de suas respectivas esferas de competência. No entanto, também é certo que, para que a proteção e defesa do consumidor sejam efetivas, é essencial que haja coordenação entre as atuações desses diversos atores. Do contrário, cria-se um cenário de decisões e medidas divergentes, com elevada insegurança jurídica. Nesse contexto, a ANAC tem buscado se aproximar cada vez mais dos membros do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Além da cooperação para resolução de casos específicos, a Agência tem participado efetivamente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor e de suas comissões. A Agência tem buscado ativamente ouvir a percepção dessas entidades acerca dos problemas que afetam os consumidores, bem como das oportunidades de melhoria, tanto na regulação quanto na qualidade dos serviços prestados pelas companhias aéreas. Mais recentemente, a ANAC lançou, em parceria com a Escola Nacional de Defesa do Consumidor, da Senacon, o curso Relações de Consumo no Transporte Aéreo.[9] Trata-se de importante iniciativa que visa, primordialmente, disseminar informações e conhecimento acerca da regulação das relações de consumo no setor aéreo, a fim de harmonizar entendimentos e possibilitar a trocar de experiências entre ANAC e instituições do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.

Incentivo à resolução extrajudicial de conflitos

Os níveis de judicialização por iniciativa de passageiros no Brasil superam, em muito, aqueles verificados em outros Países. Segundo estudo realizado pela IATA, os Estados Unidos registram 1 ação judicial a cada 7.883 voos operados. No Brasil, esse índice é de 1 ação judicial a cada 1,35 voos. A chance de uma empresa aérea ser processada no Brasil é 5.836 maior que nos Estados Unidos[10].  Esse cenário é evidentemente negativo para a sociedade como um todo. Em primeiro lugar, as empresas aéreas têm que lidar com os custos elevados da judicialização excessiva.

Igualmente importantes são os impactos do ponto de vista dinâmico: diante de um ambiente confuso, no qual as empresas precisam empenhar grande quantidade de energia, tempo e dinheiro para lidar com embaraços que pouco têm a ver com sua atividade finalística, novos concorrentes podem se ver desincentivados a operar no mercado brasileiro. O Judiciário tem que lidar com uma multiplicidade de pequenas ações individuais, de baixo impacto do ponto de vista coletivo, que poderiam ser dirimidas de outra maneira. No fim do dia, é o passageiro quem paga a conta desse sistema nocivo: os custos mais elevados das empresas incumbentes, aliados ao ambiente de desestímulo à entrada de novos players, certamente resultam em passagens mais caras. Como não existe almoço grátis, todo esse custo é repassado para os adquirentes de bilhetes aéreos.

Diante desse cenário – que ainda remanesce desafiador – a ANAC foi a primeira agência reguladora federal a aderir ao Consumidor.gov.br como órgão de monitoramento, em 2016. Nessa fase inicial, as empresas aéreas foram estimuladas a aderir voluntariamente à plataforma. Em 2019, a ANAC passou a adotar o Consumidor.gov.br como sistema eletrônico de atendimento para o registro das reclamações de consumidores sobre a prestação de serviços de transporte aéreo de passageiros; desde então, todas as empresas brasileiras e estrangeiras de transporte aéreo público regular de passageiros estão obrigadas a estar ativas na plataforma e a responder às reclamações dos usuários dos serviços no prazo de até 10 dias. A ANAC, então, monitora as reclamações dos passageiros, em âmbito coletivo, com o propósito de identificar as principais dificuldades enfrentadas pelos consumidores e, assim, subsidiar a regulação e a fiscalização do setor.

Os resultados dessa política têm-se mostrado positivos. Segundo os últimos dados divulgados pela ANAC[11], as companhias aéreas apresentaram índice de solução de problemas próximo a 80%, com tempo médio de resposta inferior a 5 dias, e índice de satisfação do usuário de 3,1 (em uma escala que vai de 1 a 5).

Redução de assimetria de informações

Além disso, uma das falhas de mercado que demandam a atuação regulatória é a assimetria de informação. No Brasil, onde a penetração do transporte aéreo, embora crescente, ainda é muito pequena[12], essa frente assume relevância ainda maior. É necessário que a sociedade como um todo – usuários do transporte aéreo e instituições que militam no campo da defesa do consumidor – tenham mais acesso a informações de qualidade sobre direitos e deveres de cada parte, bem como da própria dinâmica do setor em questão.

Nessa toada, a ANAC tem se dedicado à disseminação de informações que permitam ao passageiro estabelecer relações de consumo de forma consciente. Nesse sentido, a Agência tem realizado trabalho constante de disponibilização, em uma seção de seu website especialmente dedicada aos passageiros[13], de informações completas, em linguagem simples e direta, acerca dos direitos e deveres de usuários, empresas aéreas e operadores aeroportuários.

Recentemente, a ANAC implementou importante campanha de informação nos principais aeroportos brasileiros. Tal campanha consiste na disposição, em locais estratégicos e de grande circulação nos terminais aeroportuários, de peças de comunicação contendo QR Codes que direcionam o passageiro à página “Passageiros”, da ANAC. O intuito, aqui, é disponibilizar, de forma rápida e eficaz, todas as informações necessárias quando o passageiro mais necessita.

Além disso, a ANAC publica, trimestralmente, os Boletins de Monitoramento do Consumidor.gov.br, com indicadores relevantes acerca do desempenho das empresas aéreas na plataforma. Nessas publicações, a Agência divulga, além dos temas mais reclamados pelos passageiros em cada trimestre: o índice de reclamações por 100 mil passageiros; o índice de solução das reclamações cadastradas por usuários na plataforma; o tempo médio que as empresas levam para responder às demandas do consumidor; e o índice de satisfação do consumidor com o atendimento recebido.

Criação de incentivos para competição e melhoria da qualidade dos serviços

Uma das ações de maior relevância que têm sido conduzidas no âmbito regulatório é a frente de ação voltada ao alinhamento de interesses entre Poder Público, consumidores e empresas aéreas, de modo a estimular um ambiente de incentivos à melhoria da qualidade do serviço. Embora pareça algo contraintuitivo, fato é que, no fim do dia, todos os atores citados desejam o mesmo: o serviço de transporte rodando de forma satisfatória e sem problemas. O passageiro tem esse desejo porque adquiriu o serviço e detém a legítima expectativa de que ele seja bem prestado; a empresa tem esse desejo porque não tem interesse em lidar com problemas – notadamente no contexto retromencionado de excessiva judicialização; e a Agência Reguladora também tem esse desejo por motivos óbvios, visto que seu propósito existencial é justamente atuar para garantir um mercado regulado equilibrado.

Trata-se de uma iniciativa adicional (e não excludente) à regulação tradicional já conhecida e historicamente conduzida por Agências Reguladoras. Nesse sentido, para muito além de simplesmente criar normas, caso as Agências desejem consolidar um ambiente mais responsivo e com mais segurança jurídica, devem se valer do devido alinhamento de incentivos para instigar ações de adesão voluntária capazes de solucionar problemas existentes ou aprimorar a qualidade dos serviços prestados[14].

Nesse contexto, é necessário estudar ações práticas, com ênfase em entregas voltadas ao curto e ao médio prazos, a serem discutidas com o setor regulado de forma colaborativa, no intuito de solucionar eventuais problemas e explorar oportunidades de melhoria da qualidade da prestação dos serviços de transporte aéreo de passageiros.

III – Conclusão

Após demonstradas algumas das diversas iniciativas em curso no âmbito da regulação das relações de consumo no transporte aéreo, devemos retomar a reflexão que inaugurou o presente texto: em que consiste a proteção do consumidor na aviação civil?

Proteger o passageiro do transporte aéreo implica adotar diversas medidas voltadas ao resguardo efetivo de seus direitos, mas também atuar estrategicamente com vistas ao redesenho do cenário regulado, especialmente com vistas ao aprimoramento concorrencial, que tende a trazer efeitos positivos à diversidade de serviços ofertados e ao valor dos bilhetes aéreos.

Falando em bilhetes aéreos, vimos acima diversas ações que vêm sendo adotadas pela ANAC para conciliar a modernização do ambiente regulado com a proteção efetiva dos passageiros (simplificação regulatória/desburocratização, concessões aeroportuárias; abertura do mercado a capital estrangeiro e a novos modelos de negócio; soft regulation; regulação responsiva etc.). Estaríamos defendendo, então, que essas medidas resultaram em um cenário atual de preços baixos?

No momento em que este artigo é escrito, vivemos um cenário de altos preços dos bilhetes, a despeito de todos os avanços acima enumerados. É preciso ponderar, no entanto, fatores conjunturais que impactaram fortemente esses resultados: a já citada pandemia de Covid-19, que deu ensejo à maior crise econômica experimentada pela aviação civil ao redor do globo; asignificativa valorização do dólar perante o real; a referida alta do preço do querosene aeronáutico em 122% desde 2019; além da crescente inflação no País nos últimos anos; o nosso setor aéreo vem lidando também com outro fator de encarecimento: os altos níveis de interferências de mérito provenientes dos demais Poderes.

As Agências Reguladoras, em seu desenho original, foram concebidas para exercer seus desígnios legais com autonomia, tendo em vista, dentre outros fatores, a complexidade técnica de seus objetos de estudo. No entanto, tem sido comum as Agências sofrerem algum nível de interferência externa com relação aos assuntos regulados, sejam judiciais, legislativos ou de outras entidades, o que traz consigo o efeito deletério de prejudicar o ambiente de negócios ou até mesmo os modelos de negócios implementados por determinadas empresas. Tais interferências, além de gerarem custos operacionais (que certamente serão repassados aos passageiros), geram um cenário de insegurança jurídica – e de consequente instabilidade regulatória – capaz de afastar pretensos investimentos, bem como a vinda de novas empresas para o nosso País, embaraçando a possibilidade de atração de mais concorrência.

É dizer: não podemos afirmar algo como “a abordagem regulatória está equivocada”, simplesmente porque  tem sofrido com interferências judiciais e legislativas contínuas.O intuito do presente trabalho não é enumerar as interferências judiciais e legislativas consideradas excessivas, mas sim tratar do problema como algo sistêmico. No entanto, um exemplo célebre merece destaque:

– Em dezembro de 2016, foi editada a Resolução ANAC nº 400/2016, que entraria em vigor no mês de março de 2017, e que previa, dentre diversas outras medidas, a desregulamentação da franquia de bagagem (possibilidade de as empresas cobrarem pelo serviço específico de despacho de bagagens).

– Em janeiro de 2017, foi ajuizada Ação Civil Pública (ACP) pelo Departamento Municipal de Proteção e Defesa do Consumidor – PROCON, do Município de Fortaleza, que pleiteou a suspensão liminar de diversos dispositivos da Resolução nº 400/2016, dentre eles a desregulamentação da franquia de bagagem.

– Em outubro de 2017, as companhias aéreas deram início à prática de cobrança da bagagem despachada, contudo, ainda sem o trânsito em julgado da citada ACP. Persistia, então, o cenário de insegurança jurídica e, com isso, o contexto de dificuldade de atração de novos concorrentes.

– Inclusive, diversas ações foram ajuizadas com o mesmo objeto pelo País, até que, em abril de 2019, houve decisão exarada pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ, que estabeleceu o Foro de Fortaleza como o prevento para o tratamento da matéria.

– Em novembro de 2019, enfim, houve o julgamento da citada Ação Civil Pública em segunda instância, pelo Tribunal Regional Federal – TRF da 5ª Região, decidindo-se pela manutenção da desregulamentação da cobrança de franquia de bagagem despachada nos termos estabelecidos pela Resolução nº 400/2016, momento a partir do qual pode-se dizer que o dispositivo passou a vigorar com alguma segurança jurídica.

– Em março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou a Pandemia de Covid-19, de modo que o referido dispositivo vigorou com alguma segurança jurídica pelo período de aproximadamente 05 (cinco) meses.

– Em maio de 2022, após análise realizada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, o Congresso Nacional considerou que a desregulamentação da franquia de bagagem não teria alcançado os efeitos inicialmente pretendidos e encaminhou para a sanção do então presidente da República proposta de retorno à situação anterior[15].

– Em junho de 2022, o então presidente da República vetou a proposta e, atualmente, o veto encontra-se pendente de análise pelas Casas do Congresso Nacional.

Assim, a possibilidade de cobrança específica pelo serviço segregado de despacho de bagagens esteve em xeque perante o Poder Judiciário desde antes de sua vigência; depois, vigorou com alguma segurança jurídica pelo prazo de 05 (cinco) meses, até que sobreveio a situação pandêmica excepcional; e agora o Poder Legislativo cogita derrubar a medida regulatória, sob a alegação de que não teria surtido efeito.

Nesse sentido, caso desejemos verdadeiramente que o setor aéreo avance com saúde – o que, obviamente, tem relação direta com os benefícios a serem experimentados pelos passageiros –, é premente cultivarmos um ambiente de segurança jurídica e estabilidade regulatória.

Inclusive, vale o esforço de lograrmos uma visão mais completa: as liberdades de oferta e tarifária, princípios inerentes ao nosso sistema de aviação civil capazes de estimular a concorrência (permitindo, como dissemos, o surgimento de produtos e preços diferenciados), passaram a ser aplicados em nosso mercado doméstico a partir da publicação da Portaria do Ministério da Fazenda nº 248, de 10 de agosto de 2001. A partir daquele momento, indicadores demonstram que houve uma redução em mais de 60% do preço pago pelo quilômetro voado, bem como a inclusão de mais de 70 milhões de passageiros anuais (!), que antes não faziam uso do transporte aéreo. Atualizando os valores médios de tarifas pagos no ano de 2003, temos que, àquela época, os passageiros pagavam cerca de R$ 1.055,00 em cada bilhete aéreo emitido, enquanto, na atualidade,esse valor médio gira na casa dos R$ 700,00. É dizer: o saldo do modelo regulatório, ainda com todas as variáveis desfavoráveis acima, permanece muito positivo![16]

Diante de tal cenário, nossa conclusão segue clara. Para que essa situação melhore, precisamos nos manter firmes rumo à maior abertura do nosso mercado e rumo à estabilidade regulatória, com a criação de um ambiente regulatório propício à atração de novas empresas, inclusive aquelas cujo modelo de negócio exigem flexibilidade regulatória, tais como as low cost. Esse aprimoramento concorrencial permite que novas opções de serviço sejam oferecidas, que mercados tradicionalmente ocupados por empresas mais antigas sejam contestados por empresas novas e, nesse cenário, quem ganha é o passageiro.

* Yuri Cesar Cherman é mestre em Direito e Políticas Públicas (2017). Advogado, servidor público federal, especialista em Regulação da Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC. Atualmente, é gerente de Regulação das Relações de Consumo e Superintendente de Acompanhamento de Serviços Aéreos Substituto. É também conselheiro do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor (CNDC) e do Conselho Nacional de Turismo (CNT).

** Patricia Semensato Cabral é mestre em Economia do Setor Público pela Universidade de Brasília (2014), especialista em Defesa da Concorrência pela Fundação Getúlio Vargas (2011). Servidora pública federal da carreira de especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, tendo atuado como coordenadora-geral de Análise Antitruste no CADE e coordenadora-geral de Articulação e Relações Institucionais, na Secretaria Nacional do Consumidor. Atualmente, exerce o cargo de gerente técnica de Educação para o Consumo e Qualidade dos Serviços de Transporte Aéreo de Passageiros, na Agência Nacional de Aviação Civil.


[1] RIBEIRO, Gustavo Ferreira; GICO JR, Ivo T. O Jurista que Calculava. Curitiba: CRV, 2013 p. 12.

[2] De acordo com a ANAC, em 2019 foram transportados 119 milhões de passageiros no Brasil (entre brasileiros e estrangeiros), ao passo que, em 2022, foram transportados 97 milhões de passageiros.

[3] Os resultados da pesquisa estão relatados por BEZERRA, FERREIRA, LEITE e GOVASTKI em https://www.sitraer.ita.br/sitraer2022/Proceedings/SIT212.html . Acesso em: 3.4.23.

[4] Para mais detalhes sobre o programa “Voo Simples”, recomenda-se acesso ao sítio eletrônico <https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/voo-simples>

[5] Para mais detalhes sobre as concessões aeroportuárias, recomenda-se acesso ao sítio eletrônico <https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/concessoes>

[6] De acordo com Ana Paula Andrade de Melo e Fernando Meneguin, “soft regulation são formas regulatórias editadas pelo Estado que não exigem comando e controle e podem ou não ser apoiadas em incentivos”. MELO, Ana Paula Andrade de; MENEGUIN, Fernando. Soft Regulation: formas de intervenção estatal para além da regulação tradicional. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, fevereiro de 2022 (Texto para Discussão nº 307). Disponível em <www.senado.leg.br/estudos>.

[7] Disponível em: https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/regulacao-responsiva/conheca-o-projeto-regulacao-responsiva , Acesso em 16.3.23.

[8] MELO, Ana Paula Andrade de; MENEGUIN, Fernando. Análise de Impacto para Além das Regulações. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, outubro de 2020 (Texto para Discussão nº 286). Disponível em <www.senado.leg.br/estudos>.

[9] Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/seus-direitos/consumidor/escola-nacional-endc/cursos-endc/curso-relacoes-de-consumo-no-transporte-aereo . Acesso em 16.3.23.

[10] Disponível em: https://www.jota.info/coberturas-especiais/aviacao-desafios-da-retomada/os-impactos-da-cultura-da-judicializacao-no-setor-aereo-25112022#:~:text=Conforme%20estudo%20realizado%20pela%20IATA,cada%201%2C35%20voos%E2%81%B6%E2%80%9D. Acesso em: 16.3.23.

[11] Disponível em: https://www.gov.br/anac/pt-br/canais_atendimento/consumidor/boletins/2022/2-trimestre . Acesso em 16.3.23.

[12] De acordo com dados divulgados em estudo da Associação Latino-Americana e do Caribe de Transporte Aéreo (Alta), o Brasil apresenta número baixo de viagens por pessoa em comparação a outros países. Em 2019, o país registrou 0,5 viagens per capita, enquanto nos Estados Unidos esse número foi de 2,6; na Espanha, 4,5; e no Chile, 1,2. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-12/estudo-mostra-panorama-do-mercado-de-aviacao-brasileiro . Acesso em: 13.4.2023.

[13] Disponível em: https://www.gov.br/anac/pt-br/assuntos/passageiros . Acesso em: 16.3.23.

[14] ARANHA, M. I. et al. Estudo sobre conformação regulamentar apoiada em modelagem regulatória por incentivos: relatório técnico. Centro de Políticas, Direito, Economia e Tecnologias das Comunicações da Universidade de Brasília. Brasília, 2020, p. 19. Disponível em: <https://sei.anatel.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?eEP-wqk1skrd8hSlk5Z3rN4EVg9uLJqrLYJw_9INcO7Hks0VzNfpQoGpTDKy7bK3IIpWxpGl-WyEsckHAkOABxCpcpkhkOoWrtmbB8xE5vR82yRaSP8Rez1EN_G1zoi8>.

[15] O veto parcial ao Projeto de Lei de Conversão nº 5/2022 (oriundo da MPV nº 1.089/2021, refere-se especificamente ao seguinte dispositivo:

Art. 8º O caput do art. 39 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), passa a vigorar acrescido do seguinte inciso XV:

Art. 39 É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

(…)

XV – cobrar qualquer tipo de taxa por até 1 (um) volume de bagagem com peso não superior a 23 kg (vinte e três quilogramas) em voos nacionais e com peso não superior a 30 kg (trinta quilogramas) em voos internacionais. (NR)”:

[16]Para mais detalhes acerca dos benefícios das liberdades de oferta e tarifária, recomenda-se a leitura do Acórdão nº 1241/2018 do Plenário do Tribunal de Contas da União – TCU.


 

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