Selic e inflação: a dosagem inadequada

Por Roberto Macedo*

Escrevi este texto antes de o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central anunciar ontem a decisão de queda ou não da Selic, a taxa básica de juros, que estava em 13,75% ao ano. Na terça-feira, este jornal publicou a matéria 70% do mercado vê Selic 0,25 menor (1/8, B1). Os 30% restantes previam redução de 0,50. A Selic passou a subir quando estava em 2% e repetiu-se, aqui, um debate que na literatura sobre o assunto é conhecido como um entre gaviões e pombos.

Os gaviões argumentam que manter a inflação baixa é a prioridade maior da política monetária, enquanto os pombos defendem, entre outros aspectos, reduções da taxa básica de juros para estimular o crescimento da economia. Aqui, no Brasil, o líder do primeiro grupo é o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, enquanto Lula se destaca no segundo grupo, tendo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, como seu parceiro, ainda que mais discreto.

Entendo que uma inflação alta desorganiza a economia e deve ser combatida aumentando a Selic, mas há uma questão de dosagem: logo que a inflação for cedendo claramente, a atitude dos pombos deve entrar em cena. Contudo, aqui, a inflação começou a ceder logo depois de a Selic chegar a 13,75%, mas esta mantém-se inalterada por 12 meses, com sérias consequências, como o aumento do custo do crédito e menor crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).

Vejamos alguns números: medida em 12 meses, a inflação avaliada pelo IPCA, o índice-meta da política monetária, estava em 2,13% em junho de 2020, e a partir daí começou a subir, atingindo um máximo de 12,13% em abril de 2022. De sua parte, a Selic estava em 2,0% ao ano em meados de março de 2021, quando passou a 2,75% e foi aumentando até alcançar 13,75% em agosto de 2022.

Percebe-se que o Copom demorou a agir, pois quando, em março de 2021, resolveu iniciar um ciclo de aumento da Selic, a inflação medida pelo IPCA já estava em 6,1% em 12 meses, três vezes o valor da Selic no início do mês. E, depois, atrasou-se também na hora de reduzir a Selic, pois quando ela chegou a 13,75%, em agosto de 2022, a inflação já havia caído para 8,7% em 12 meses e continuou a cair até atingir 3,6% em junho deste ano. Ou seja, a inflação caiu a menos da metade em dez meses, enquanto a Selic não se alterou nesse período!

A Selic pode ser vista como um remédio contra a inflação, mas a análise anterior mostra que sua dosagem veio atrasada quando a inflação começou a subir e a última e alta dose da Selic ficou no mesmo nível por um longo período, prejudicando tomadores de crédito e o andamento da economia. E, entre outros aspectos, as finanças públicas foram afetadas, porque a Selic também impacta a taxa de juros do financiamento da dívida pública.

O Banco Central deveria ter sido cobrado pelo Congresso, chamando o presidente do banco para se explicar por esses malfeitos, numa reunião em que pombos também fossem representados e pudessem se manifestar. Como já dito, o Copom exagerou como pombo mantendo a Selic em 2% quando a inflação já estava subindo e passou a se comportar como gavião bravo mantendo a Selic muito alta, relativamente à inflação que caía bastante.

É interessante que a lei de independência do Banco Central dá prioridade aos gaviões, pois diz no seu primeiro artigo que o “(…) Banco Central tem por objetivo fundamental assegurar a estabilidade de preços”. Mas também tem um ninho para pombos no parágrafo único desse artigo: “Sem prejuízo de seu objetivo fundamental, o Banco Central do Brasil também tem por objetivos zelar pela estabilidade e pela eficiência do sistema financeiro, suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego” (ênfases minhas).

O Banco Central pode cantar de gavião ou de pombo. A gestão da política monetária é uma arte que se sustenta em informações e num modelo de causalidade e quem faz essa gestão precisa dominá-la com base no seu conhecimento e na sua experiência. Como professor, eu daria nota mais baixa para o último período, em que atuou como gavião, pois o exagero de sua dosagem claramente alongou-se além da conta.

Reconheço que a posteriori é mais fácil ver os problemas conforme a ótica que apresentei, mas a discrepância entre a queda da inflação e a manutenção da Selic em 13,75% é por demais evidente para não isentar de crítica o comportamento gaviônico do Copom. Também se pode dizer que, se a queda da Selic foi de 0,25 ou de 0,50 ontem, isso não fará muita diferença, pois a queda seria de 1,8% da Selic no primeiro caso e de 3,6% no segundo. O que terá sido de maior importância será a mudança de direção, e os pombos devem, agora, insistir no aumento da velocidade de redução.

Fico imaginando um período de inflação e Selic muito baixas para que o Banco Central possa, também, atuar como seus pares nos EUA, na Europa e no Japão num passado não muito distante, via quantitative easing, ou relaxamento monetário, adquirindo ativos financeiros, entre eles hipotecas imobiliárias para expansão do crédito nessa área.

* Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard), professor sênior da USP e membro do Instituto Fernand Braudel.

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 03 de agosto de 2023.