Valeu a pena privatizar a Vale?

Baixada a poeira da campanha presidencial, talvez já seja possível avaliar de forma menos emotiva os efeitos da privatização. Antes tarde do que nunca. Inferir os efeitos da introdução de gestão privada no desempenho de uma empresa não é tarefa fácil. Exige que se compare o desempenho da empresa como ela é hoje com o desempenho de uma empresa que não existe: uma Vale do Rio Doce que não tivesse sido privatizada e estivesse funcionando hoje. Essa seria a situação ideal: duas empresas idênticas, enfrentando condições de mercado idênticas, no mesmo momento histórico e econômico, tendo como única diferença o fato de uma ser privada e a outra ser estatal. Nesse caso, se poderia atribuir a diferença dos retornos econômicos das duas empresas à única característica que as distingue: ser estatal ou privada. É o que os economistas chamam de  “exercício contra-factual”: qual seria o retorno da empresa privatizada se ela tivesse permanecido sob controle estatal?

Se as empresas de um mesmo setor fossem privatizadas aleatoriamente, compararíamos os retornos das empresas privatizadas com os das públicas, como fazem pesquisadores de um laboratório farmacêutico quando testam uma nova droga, trabalhando, de forma controlada, com dois grupos: um de tratamento (que recebe a droga) e outro de controle (que toma um placebo). Para o bem ou para o mal, o acesso a tais experimentos nas ciências sociais é limitado.  Empresas não são privatizadas aleatoriamente. Por exemplo, o setor privado tem mais interesse por empresas mal geridas porque os ganhos com a troca de controle são maiores. Assim, a melhora na gestão pode ocorrer tanto por reversão à média (como diria o Tiririca, ‘pior do que está não fica’), ou porque, de fato, a gestão privada é mais eficiente.

Tomemos o caso da VALE. Ao analisar seus retornos nos últimos anos, a primeira impressão é que a privatização melhorou espetacularmente seu desempenho. Entre junho de 1997 e janeiro de 2011, a ADR (American Depositary Receipts)[1] da VALE gerou um retorno nominal em dólar (incluindo distribuição de dividendos) de incríveis 3.019%. No entanto, no mesmo período, o principal produto vendido pela VALE, o minério de ferro, também se valorizou fortemente em decorrência do aumento da demanda advinda da China. Entre 2003 (primeiro ano para o qual há dados disponíveis) e 2010, o preço do minério de ferro CIF[2] na China subiu 750%, tendo a maior parte desse aumento ocorrido a partir de 2005 quando, coincidentemente ou não, o retorno da VALE se acentua. Como o aumento do preço do minério não tem a ver com a privatização, parte do retorno não pode ser atribuída à troca de gestão.

Resta perguntar o seguinte: a privatização explica a diferença entre os 3.019% de retorno do papel e a apreciação de 750% no preço do minério?

A quantidade produzida aumentou 70% entre 2003 e 2010. Para evitar qualquer alegação de que nossas conclusões dependem disso, faremos a suposição heróica de que a privatização em nada contribuiu para o aumento de sua produção. Ou seja, a capacidade adicional já estaria disponível ou seria facilmente adicionada mesmo sob controle estatal.

Também para simplificar a argumentação, suporemos que o custo unitário subiu proporcionalmente com o preço. Assim, a margem de lucro teria crescido os mesmos 750% do aumento de preços (se preços e custos de produzir uma unidade sobem na mesma proporção, o lucro por unidade, definido como a diferença entre preço e custo, também cresce nessa mesma proporção). Nesse caso, o lucro da empresa subiria 1.345%[3], devido ao aumento de 70% na quantidade vendida e ao aumento de 750% na margem de lucro.

Ou seja, há uma diferença substancial entre o aumento do lucro da empresa (acima calculado em 1.345%) e o retorno nominal dos ADR (de 3.019%). São  1.674 pontos percentuais (pp) do retorno do ADR que ainda não estão explicados por aumento de preços e de quantidades vendidas, sob a hipótese de que o custo unitário subiu junto com o preço.

Portanto, a nossa hipótese de que o custo unitário de produção havia subido tanto quanto o preço parece não se aplicar. Será que foi a troca para a gestão privada que derrubou os custos e aumentou o lucro e o retorno da empresa? Ou terão sido economias de escala[4] que geraram os ganhos?

Na ausência de experimentos controlados, que permitam comparar a Vale privada a uma inexistente Vale estatal, emulamos o que seriam grupos de tratamento e controle. As três maiores empresas de mineração são listadas em bolsas de valores: BHP, Rio Tinto (RIO) e VALE. As duas primeiras sempre foram privadas. Já a VALE, como sabemos, foi privatizada em 1997. A RIO é mais comparável com a VALE porque sua exposição ao minério de ferro é maior do que a da BHP (62% versus 34% da margem EBITDA em 2010).

A lógica do argumento para inferir o efeito da gestão privada na VALE é simples. A menos da privatização, RIO e VALE foram basicamente expostas aos mesmos choques (por exemplo., aumento de demanda na China). É razoável, portanto, atribuir diferenças de rentabilidade à mudança de gestão na VALE.  A Figura 1[5] mostra a evolução dos retornos das ADRs de RIO e de VALE desde maio de 1995 (incluindo dividendos). Entre junho de 1997 e janeiro de 2011, a diferença nos retornos é de impressionantes 1.696 pp. Sobre isso, cinco comentários:

1.      Antes da privatização, o retorno da RIO aumentou mais do que o da VALE. Portanto, a diferença não pode ser explicada por diferentes tendências pré-privatização. Como os retornos são muito baixos em relação aos atuais, não fica muito evidente no gráfico que a RIO tinha maior retorno que a VALE no período.

2.      O frete transoceânico aumentou 400% entre setembro 2005 e setembro de 2008. A base de operações da RIO é na Austrália, mais perto da China. Portanto, o aumento no preço do frete prejudica mais o lucro da VALE do que da RIO (o que torna o nosso argumento ainda mais robusto: a Vale privatizada teve retorno maior que a RIO, mesmo enfrentando maiores custos de transporte).

3.      A exposição da RIO ao minério de ferro é menor, mas, incorporando-se a operação de cobre, as exposições agregadas em cobre e ferro são parecidas e o preço do cobre subiu tanto quanto o do minério.

4.      Quaisquer ganhos de escala que a VALE possa ter tido são parecidos com os que a RIO teve, pois ambas trabalham com processos produtivos similares.

5.      Os múltiplos[6] pagos por empresas brasileiras aumentaram porque o Brasil melhorou institucionalmente; como Austrália já era um país organizado em 1997, os múltiplos não aumentaram muito por lá. Por isso o Ibovespa subiu mais do que o AUS 200 (principal índice australiano), e isso não é mérito da privatização da Vale. Entre junho de 1997 e janeiro de 2011, o Ibovespa teve um retorno real de 210%, contra 28% do AUS 200. Ou seja, 182 pontos percentuais da diferença se devem à melhoria do Brasil em relação à Austrália.

Tirando esses 182 p.p. que diferenciam os dois países da diferença de retorno entre as duas empresas (1.696 p.p), restam ainda impressionantes 1.514 p.p. de valorização do ADR da Vale em relação ao da RIO. A explicação para tal  diferença é a privatização;  a mudança que afetou apenas a Vale.

Por fim, considerando apenas o período “pré-China”, a diferença de retornos foi de 231 pontos percentuais.

Os benefícios da privatização foram amplificados durante o boom, fenômeno não surpreendente para os especialistas em Economia das Organizações. As mudanças de gestão dificilmente são contínuas. Em geral, são necessários choques exógenos significativos (inovações tecnológicas, aumento substancial do preço de um insumo relevante, ou elevações de preços dos produtos vendidos) para que tais mudanças sejam iniciadas. Além disso, as mudanças de gestão envolvem várias dimensões que apresentam complementaridades e geram sinergia. Portanto, como sugerem Milgrom e Roberts (“The Economics of Modern Manufacturing: Technology, Strategy and Organization”, American Economic Review, 1990), mudanças tendem a ocorrer em todas as dimensões complementares, amplificando seus benefícios. Em decorrência da retro-alimentação, o efeito total é maior do que a soma das partes. Por já ser privada, a RIO não pôde explorar a mesma gama de ganhos gerenciais que beneficiaram a VALE.

Estabelecer relações causais em ciências sociais é missão espinhosa. Tendo essa ressalva em mente, a evidência disponível sugere que a gestão privada adicionou enorme valor à VALE. Não é demais lembrar que tais ganhos de gestão foram, em grande parte, apropriados pelo contribuinte através de tributos e dos dividendos recebidos pelo BNDES e PREVI (através da geração de superávits reconhecidos no resultado do Banco do Brasil) em decorrência de sua participação na VALEPAR (empresa que controla o Conselho de Administração da VALE e detém a maioria do capital votante).


[1] Certificados representativos de ações da Vale, negociados no exterior, lastreados em ações da Cia depositadas no Brasil junto a um custodiante. Equivale a ações da empresa negociadas no exterior.

[2] O chamado preço CIF (de Cost, Insurance and Freight – custo, seguros e frete, em português), como o nome sugere, significa o preço final de uma mercadoria importada, incluindo as despesas de frete e seguros até o local de entrega da mercadoria.

[3] Variação da quantidade * Variação da margem de lucro = (1+70%)*(1+750%) – 1 = (1,7)*(8,50) – 1=13,45 =1345%

[4] Ocorrem economias de escala quando o aumento da produção gera um aumento de custos menos que proporcional ao aumento da produção, o que tende a elevar o lucro da empresa.

[5] A figura é apresentada na versão pdf do texto, disponível na parte inferior desta página.

[6] O portal de investimentos infomoney assim define múltiplos: “Os múltiplos de mercado são calculados dividindo variáveis como valor de mercado da empresa por uma série de indicadores presentes nos demonstrativos financeiros, como valor patrimonial, lucro estimado, fluxo de caixa. Estes múltiplos são equivalentes aos que você calculou para o seu imóvel: Preço/Quartos, Preço/Vagas, Preço/Área etc. Assim como no exemplo do imóvel, você deve comparar os múltiplos de mercado da empresa com os múltiplos de empresas similares. Por empresas similares entendemos empresas que atuem no mesmo segmento de mercado (estejam no mesmo bairro), tenham rentabilidade comparável (mesmo número de quartos), etc. A comparação entre os múltiplos de empresas é chamando Análise Comparativa, no caso das empresas pertencerem ao mesmo setor chamamos de Análise Setorial”.