Por que o modelo de concessões de rodovias federais no Brasil não está apresentando bons resultados?

Em reportagem de 16 de novembro de 2011, a Revista “ Veja” aponta um padrão comum de problemas nas sete rodovias federais com operação concedida à iniciativa privada em 2007: em todas elas as obras de melhorias e manutenção acordadas nos contratos de concessão estão longe de serem cumpridas pelos concessionários. No caso da Rodovia do Aço a paralisia de obras teria levado inclusive a um aumento significativo do número de acidentes.

À época, o resultado do procedimento licitatório que indicou as empresas OHL para cinco rodovias e BRVia e Acciona para as outras duas foi tido como um retumbante sucesso pelo governo, especialmente em função dos deságios dos lances para os preços dos pedágios considerados elevados, como no caso de trecho da Fernão Dias que atingiu 65,4%.

Este resultado frequentemente se contrapunha ao que seriam os elevados pedágios cobrados nas concessões realizadas pelo governo paulista.

A principal razão da diferença de desempenho entre os dois modelos residiria no próprio formato do leilão. O governo federal optou por um procedimento no qual o critério de definição do vencedor seria dado pelo menor valor do serviço, no caso do pedágio. Já no caso do governo paulista, a escolha foi por um critério do maior valor pago pela concessão, deixando a regra do pedágio integralmente para a regulação. O governo federal defendia que o seu modelo seria naturalmente mais pró-consumidor ao induzir os participantes do certame a reduzir ao máximo os preços do pedágio já no próprio leilão. Nos leilões paulistas, ao contrário, o modelo teria privilegiado o aporte de recursos ao Estado em detrimento do consumidor.

A despeito de a intuição deste raciocínio parecer muito cristalina, ela desconsidera os incentivos que permeiam o comportamento dos participantes do certame em cada um desses modelos (menor pedágio ou maior preço da concessão).

Na verdade, esta não é uma discussão nova na teoria econômica da regulação. Demsetz (1968)[1] propôs que concessões de serviços regulados fossem realizadas por um leilão de menor preço do serviço. Isto resolveria um dos problemas fundamentais dos reguladores, em um contexto de assimetria de informações sobre custos das firmas reguladas: definir qual seria o preço ótimo do serviço. Assumindo um leilão suficientemente competitivo, os participantes estariam dispostos a fazer lances, oferecendo preços dos serviços menores até atingir os seus respectivos custos médios. No critério de menor preço do serviço, o vencedor seria aquele com menor custo médio, pois este estaria disposto a fazer lances em valores entre o seu próprio custo médio e o do segundo mais eficiente, que todos os outros participantes não estariam dispostos a fazer, dado que, se o fizessem, incorreriam em prejuízo[2]. Assim, além do certame baseado no menor preço do serviço se constituir em um mecanismo de revelação da informação sobre o preço ótimo do serviço regulado para o regulador (uma preciosidade em um contexto de assimetria crônica de informação do regulador), também viabiliza que o escolhido seja aquele participante com maior eficiência. Dois coelhos com um só tiro!

O problema deste mecanismo foi apontado por Williansom (1976)[3]. No caso do leilão baseado nos preços dos serviços haveria uma tendência sistemática dos participantes do certame a realizarem lances com valores abaixo daqueles minimamente consistentes com a sua função custo. Isso ocorreria na medida em que tais participantes acreditassem ser capazes ex-post de convencer o regulador a permitir o incremento dos preços dos serviços acima daquilo que foi resultado do lance no leilão. O ponto principal para Williansom é que faltaria capacidade ex-ante ao regulador de se comprometer (commitment) a não ceder às demandas ex-post de reajuste das tarifas acima do combinado. Ou seja, o regulador não é capaz de se comprometer a não renegociar o valor fundamental que ensejou o resultado do leilão, ou seja, o preço do serviço. Isso decorre especialmente das dificuldades do poder público para trocar o fornecedor do serviço ex-post rapidamente e com baixo custo.

Um dos maiores geradores de custos de troca ex-post são os elevados sunk costs (custos afundados) que permitem comportamentos oportunistas tanto do concessionário como do próprio Estado[4][5].

Se o governo demandar ex-post uma troca de contratante por descobrir que a proposta feita pelo atual concessionário, à época do leilão, era irrealista, deverá ser efetuada a compensação dos sunk costs já incorridos pela empresa. De fato, provavelmente, haverá substancial custo judicial para determinar os valores da compensação e ainda o provável questionamento do concessionário na Justiça sobre as razões da opção do governo pela troca. Aduzam-se ainda os custos e a demora para organizar e realizar uma nova licitação. O tempo perdido deve afetar negativamente a probabilidade de reeleição do governante, em função do custo político no atraso da entrega da obra à população. Como os serviços concedidos como rodovias são usualmente utilizados por elevada parcela da população, este custo político da maior demora na entrega da obra em função da troca do concessionário por outro mais “apropriado” tende a ser grande. É justamente este custo político que deteriora a capacidade do governo em se comprometer ex-ante a não renegociar ex-post.

Se os participantes do certame racionalmente esperam ex-ante que realmente faltará commitment ao regulador ex-post se pressionado a renegociar, o valor do preço do serviço que eles devem propor em seus lances passa a ser desvinculado dos seus reais fundamentos de demanda e custo. Pior, é razoável postular que o valor do preço do serviço definido no lance de cada participante reflita não a sua eficiência própria, como custos menores, mas sim a capacidade percebida de cada um  em realizar um lobby bem sucedido no regulador quando o contrato estiver em operação. Ou seja, vencerá quem tiver melhores conexões políticas ou quem for mais otimista em relação às dificuldades do regulador em evitar uma renegociação ou mesmo minimizar o incremento de preços demandado pelo concessionário ex-post.

Nesse contexto, um dos principais objetivos do mecanismo de leilão, que é o de garantir a escolha do participante mais eficiente, é comprometido. Outro objetivo do mecanismo que seria o de “revelar” para o regulador qual o “preço certo” do serviço também não é alcançado e a assimetria de informação regulador-regulado persevera.

No caso da concessão das rodovias federais foi justamente o que aconteceu. Os concessionários em curto espaço de tempo já solicitaram aumentos dos valores do pedágio e o governo federal já os concedeu.

Além da hipótese do lobby bem sucedido, o governo federal tem outra boa razão para ceder: se o pedágio é muito baixo, os serviços de obras e manutenção da rodovia definidos no edital e/ou contrato de concessão se tornam naturalmente mais lentos, prejudicando a meta de melhorar a qualidade das rodovias do país.

E se o governo tentar fazer valer o que está no edital/contrato, ao preço do serviço definido no leilão, o concessionário provavelmente alegará o desequilíbrio econômico-financeiro da concessão. E a alegação é, ainda por cima, verdadeira. Só não é uma novidade: desde o leilão o concessionário já sabia que havia um desequilíbrio, mas estava certo que conseguiria renegociar, um típico comportamento oportunista.

Dada a assimetria de informação existente entre regulador e regulado, é difícil muitas vezes saber, no momento do leilão, se o lance vencedor embute um valor irrealista, fruto de comportamento oportunista. No caso em tela, entretanto, o conhecimento sobre o desequilíbrio ex-ante não parece ter ficado restrito ao concessionário. Na abertura dos envelopes com os lances do leilão, todos os outros participantes ficaram muito surpresos com a “agressividade” dos lances das vencedoras e estas, por sua vez, afirmavam que a “surpresa” não passava do “choro dos derrotados”. O governo federal parece ter concordado com esta avaliação até para não estragar a “festa” do elevado deságio verificado.

Sendo assim, o ponto principal aqui levantado não é que o governo federal esteja sendo excessivamente generoso ao permitir ex-post o incremento dos preços dos serviços. Se este não for permitido, a meta de incremento da qualidade das rodovias simplesmente não se realiza. O problema é que o desenho do leilão, baseado em preços do serviço, é que definiu os incentivos para lances irrealistas e, por conseguinte, a inviabilidade dos investimentos requeridos. E caso o governo busque punir, agora, o comportamento oportunista pela troca do concessionário, também incorrerá em elevados custos políticos.

Note-se que o problema indicado não se limita aos leilões de concessão baseados na variável “preço de serviço”. Qualquer critério de seleção de concessionário que se basear em variáveis que vão se realizar ex-post, também padecem do mesmo problema se não forem dados incentivos apropriados ex-post para o cumprimento da obrigação ofertada no lance. Um exemplo é o leilão de áreas de exploração de petróleo pela Agência Nacional do Petróleo (ANP) que inclui no critério do procedimento licitatório o Programa de Exploração Mínima (PEM) – conjunto de estudos que o concessionário se comprometeria a fazer como condição para exploração de determinada área.

É possível, inclusive que, para variáveis como preço, o problema seja menor já que a permissão posterior para reajustar acima do valor do lance tende a ser politicamente mais custosa. A reação negativa dos eleitores a incrementos da tarifa pode ser até maior que a reação à qualidade da rodovia. Já variáveis nas quais a atenção do eleitorado é naturalmente reduzida, como no caso do PEM, o custo incorrido pelo governo por ceder e negociar é relativamente menor.

De outro lado, a mesma reportagem de “Veja” destaca que as rodovias paulistas, concedidas pelo critério de maior preço pago pela concessão, apesar de contarem com pedágios mais altos, tiveram as obras contratadas entregues antes mesmo do prazo. O regulador paulista simplesmente não contou com o leilão para “revelar” a informação de qual o “melhor preço” do serviço, mas tão somente para conhecer quem será o candidato a concessionário mais eficiente a ser escolhido. Isso porque, em geral, os participantes que fazem lances maiores pela concessão são os com melhores prognósticos de lucros, os quais por sua vez estão associados a menores custos e/ou maior demanda em função de um serviço de mais qualidade. Em síntese, à maior eficiência. Os valores a serem pagos pela concessão ocorrem imediatamente ou em prestações. A capacidade do concessionário pressionar para renegociar tais valores e do regulador para aceitar tal pressão é praticamente inexistente, pois se tal ocorrer o risco de um processo judicial por malversação de recursos públicos é alto. Isso eleva a capacidade de o regulador se comprometer em relação ao pleno cumprimento da obrigação relativa ao lance de preço do leilão. Aqui, a principal fonte de commitment é o Tribunal de Contas da União (TCU) ou do Estado, conforme o caso. Em síntese, há naturalmente um commitment muito maior no critério do preço da concessão do que no preço do serviço.

Dado o que se verificou na prática, é muito razoável postular que os incentivos abordados foram chave na explicação de porque as rodovias paulistas estão melhores que as sete rodovias concedidas pelo governo federal em 2007.

Cabe uma palavra sobre benefícios e custos de uma eventual renegociação dos termos dos contratos de concessão. A despeito de adotarmos como premissa que renegociações são ruins, este nem sempre é o caso. Há contingências não previstas que derivam do fato de o contrato de concessão de rodovias, como todos contratos deste tipo, ser incompleto. A correção ex-post dos problemas derivados dessas contingências é desejável.  Há também contingências previsíveis ex-ante cuja solução deveria ser tratada no próprio edital e/ou contrato de concessão, sendo, portanto, consideradas por todos os participantes do certame. Nos dois casos (contingências imprevisíveis e/ou previsíveis e incluídas no contrato), a renegociação não gera distorções no processo de escolha do vencedor e nem de oportunismo. A renegociação traz mais benefícios do que custos, seja no curto (ex-post), seja no longo prazo (ex-ante e ex-post).

O problema aqui analisado, no entanto, diz respeito a uma contingência previsível e até provável, ou seja, o preço do pedágio não ser suficiente para financiar os custos das obras, em um típico comportamento oportunista do concessionário. Apesar de a renegociação ser ótima no curto prazo (por gerar preços baixos),  ex-post, ela se revela desvantajosa.

Guasch (2004)[6] sumaria este ponto de quando a renegociação é ou não desejável:  “se os licitantes acreditam que é possível e provável  renegociar, seus incentivos e lances serão afetados, e o leilão irá selecionar não o provedor mais eficiente, mas sim aquele mais apto em renegociações. A renegociação deve ocorrer apenas quando justificada por contingências previstas no contrato ou por eventos de grande impacto não previstos” (tradução livre) [7].

Os incentivos envolvidos no leilão por menor preço do serviço levam, inclusive, a um incremento da probabilidade de renegociação. Guasch (2004), a partir de dados de contratos de concessão em toda a América Latina e Caribe, achou um resultado no qual o índice de renegociação dos contratos de concessão foi de 60% quando o critério do leilão foi o de menor preço do serviço contra 11% quando o critério foi o de maior valor pago pela concessão[8].

Enfim, o problema aqui tratado é típico da chamada nova economia institucional na linha de Douglas North (1990)[9]. O modelo de leilão baseado no menor preço do serviço exige capacidade institucional significativamente maior do governo no sentido de se comprometer a não renegociar os termos do contrato de concessão quando a demanda se derivar de um comportamento oportunista do operador.

Outro ponto relevante é que há um dilema  entre preços dos serviços mais baixos e qualidade/velocidade das obras de manutenção/melhoria das rodovias. Dada a assimetria de informação do regulador em relação à função custo do regulado, uma obsessão muito grande por modelos de concessão que gerem preços menores naturalmente compromete as obras de manutenção/melhoria das rodovias. A aceitação de preços maiores incrementa o potencial de obras mais bem feitas e rápidas.

Enfim, reconhecer que a capacidade institucional do Estado brasileiro ainda é insuficiente e até que a obsessão por preços do serviço muito baixos pode ser muito custosa para assegurar o investimento em infraestrutura seria uma “humildade saudável” do governo.  Ou são aperfeiçoados os mecanismos de “amarrar as mãos do regulador” (ou de commitment) ou são alterados os critérios do leilão. Acreditamos que, no caso da concessão de rodovias, o segundo caminho seja o mais indicado


[1] Demsetz, Harold: “Why Regulate Utilities?”. Journal of Law and
Economics, Vol. 11, No. 1, (Apr., 1968).

[2] Assumindo as premissas do teorema da equivalência de receitas esperadas nos leilões, este resultado seria verdadeiro tanto para um leilão aberto descendente quanto com um leilão de um só lance em envelopes fechados. Ver Klemperer, Paul: “Auctions: Theory and Practice”. Princeton University Press, 2004.

[3] Williamson, Oliver E. (1976), “Franchise Bidding for Natural Monopolies-in General and with Respect to CATV”, The Bell Journal of Economics, Vol. 7, No. 1 (Spring).

[4] Sunk costs ou custos afundados são aqueles que não podem ser recuperados. Por exemplo, uma máquina que vale R$ 100 e que pode ser vendida no mercado de segunda mão por R$ 50, o sunk cost (não incorporando a taxa de desconto) seria R$ 50. No caso de rodovias, os investimentos em manutenção/recuperação/ampliação em uma rodovia X não podem ser removidos do local e utilizados em outra rodovia Y, tornando os sunk costs 100% dos valores investidos. Estes são custos literalmente afundados. Este, no entanto, é um problema mais genérico dos setores de infraestrutura.

[5] Note-se que há várias situações em que o oportunista é o Estado e não o concessionário: após a realização dos custos afundados pelo último, o Estado (especialmente governos recém-eleitos descomprometidos com a estabilidade das regras do procedimento licitatório) é que tenta forçar as tarifas para níveis inferiores ao estabelecido. Este problema aconteceu tanto no Paraná como no Rio Grande do Sul nesse mesmo setor de concessão de rodovias. Analisar a possibilidade de oportunismo do Estado, apesar de frequente, não é o objetivo desta nota.

[6] Guasch, J.Luis: “Granting and Renegotiating Infrastructure Concessions Doing it Right”. The World Bank Institute, 2004.

[7] if bidders believe that renegotiation is feasible and likely, however, their incentives and bidding will be effected, and the auction will likely select, not the most efficient provider, but the one most skilled at renegotiations. Renegotiation should occur only when justified by the initial contract´s built-in contingencies or by major unexpected events”.

[8] O autor analisa vários outros itens do contrato de concessão que condicionam a renegociação.

[9] North, Douglas.: Institutions, Institutional Change and Economic Performance”. Cambridge University Press, 1990.