Economia do crime: o caso do contrabando de cigarro

Por Pery Francisco Assis Shikida*

A economia do crime é uma das abordagens no campo das ciências sociais aplicadas que procura entender as motivações para o crime a partir da análise econômica. Um dos maiores expoentes dessa área é Gary Stanley Becker, saudoso professor da Universidade de Chicago e autor do artigo “Crime and punishment: an economic approach” (1968). Utilizando-se de modelagem matemática, Becker ressaltou que uma pessoa propensa ao crime pondera, racionalmente, os custos e benefícios esperados de sua prática ilícita, para a partir daí escolher atuar (ou não) no mercado econômico ilegal. Mas, conceitualmente o que é um mercado econômico ilegal? É o ambiente no qual ocorrem os crimes considerados de natureza lucrativa, ou seja, delitos que visam, per se, benefícios financeiros como roubo, furto, tráfico de drogas, receptação, estelionato, contrabando etc. Crimes como estupro, tortura, homicídios passionais etc. não têm como escopo final o lucro.

Complementando, para Fragoso (1982, p. 1) crime de natureza lucrativa é todo aquele “[…] cuja objetividade jurídica reside na ordem econômica, ou seja, em bem-interesse supra-individual, que se expressa no funcionamento regular do processo econômico de produção, circulação e consumo de riqueza”. Vale destacar que crime é todo “ato de transgressão de uma lei vigente na sociedade” (BRENNER, 2001, p. 32).

Para Becker (1968), postulando que os indivíduos são racionais, o tratamento matemático de uma atividade econômica ilícita pode ser sumarizado pela utilidade esperada (Ui), de um lado da equação, que é igual à realização de uma atividade ilícita (Ri) vezes a probabilidade de não ser preso [1 – p(r)], menos o custo de planejamento e execução do crime (Ci), o custo de oportunidade (Oi), o valor esperado da punição caso esse indivíduo seja preso [p(r. Ji], subtraindo também a perda moral originária da execução do crime (Wi), tudo isto do outro lado dessa equação. De tal forma, tem-se:

Ui = [1 – p(r)] . Ri – Ci – Oi – [p(r. Ji] – Wi      (1)

Nesse sentido, se o benefício líquido dessa utilidade esperada Ui for positivo, o crime tende a ser efetuado, pois os benefícios são maiores vis-à-vis os custos. Convém ressaltar que nessa teorização Becker (1968) remontou à ideia do cálculo utilitarista e dissuasivo de Beccaria (1764) e Bentham (1843). Mutatis mutandis, no mercado ilegal, da mesma forma que em outro mercado econômico qualquer, o indivíduo age de maneira racional, sendo motivado por medidas dissuasórias ou incentivos, agindo de acordo com a lógica de obter o maior proveito possível de sua função utilidade.

Em sendo o foco da economia do crime explicar os comportamentos de pessoas que quebraram regras, com base na suposição de uma racional análise custo e benefício implícita nessa atividade ilícita, esta abordagem pode ser útil para elucidar o contrabando, mais especificamente, do cigarro. Sendo este o objetivo do presente artigo, metodologicamente usar-se-ão algumas referências como Schlemper (2018), Nickel (2019), Amaral (2019), Nicola et al. (2020) e Shikida (2018, 2020) nesta análise de cunho explicativo.

Dois pontos, imbricados entre si, precisam ser ressaltados preliminarmente. Primeiro, o cigarro figura como um produto que traz prejuízos à saúde do consumidor, devido ao vício que provoca. Portanto, algumas formas de desestimular seu consumo são via propaganda, políticas restritivas ao local de fumantes e/ou uso de alta tributação que elevem os preços. Como o cigarro apresenta demanda pouco flexível em relação ao aumento do preço, o aumento de tributos para desestimular seu consumo pode, por outro lado, incentivar o uso de produtos substitutos, leia-se contrabandeados (NICOLA et al., 2020). Em paralelo se discute o segundo ponto, qual seja, o contrabando de cigarros é um ato ilegal, consequentemente, seu combate é atributo da polícia e sua punição função do judiciário.

Sobre estes dois pontos apresentados cabe menção. A ideia de se preocupar com a saúde do consumidor é correta. Não obstante, a tributação atualmente empregada com o objetivo de elevar os preços finais do cigarro, visando desestimular seu consumo, no caso da existência de produtos substitutos para o cigarro legal, acaba favorecendo o cigarro contrabandeado. Outrossim, sabidamente a repressão nas fronteiras é importante e indispensável, mas não é suficiente, pois o mercado do cigarro contrabandeado vem crescendo assustadoramente (FSBCOMUNICAÇÃO, 2020). Ademais, em Nickel (2019) se verifica que grande parte do tempo do judiciário fronteiriço em Foz do Iguaçu (Paraná) se destina aos esforços de apuração, julgamento e punição dos casos de contrabando. É muito tempo despendido com um problema que já é crônico e que precisa ser eficazmente resolvido.

A carga tributária sobre cigarros lícitos, com tributos pagos, subiu 52% acima da inflação desde o aumento da alíquota de Imposto sobre os Produtos Industrializados sobre cigarros ocorrida em 2011. O preço médio dos cigarros lícitos aumentou 40% em termos reais no período 2009-2014. As estimativas apontam para o preço médio dos cigarros lícitos em torno de R$7,51/maço, já dos cigarros ilícitos é de R$3,44/maço. Como concorrer com cigarros contrabandeados diante desse cenário? A arrecadação tributária caiu, apesar da elevação das alíquotas, devido à queda das vendas de cigarros lícitos. Como corolário, o market-share atual do mercado ilícito é de 57%, com tendências para se elevar. O prejuízo na arrecadação devido ao poder do mercado ilegal (evasão causada pelo mercado ilegal de cigarros), em 2019, foi de R$12,2 bilhões (FSBCOMUNICAÇÃO, 2020).

A partir da compilação de alguns resultados de Schlemper (2018), Nickel (2019), Amaral (2019) e Shikida (2018, 2020), lamentavelmente observa-se que o crime de natureza financeira está, de modo geral, compensando no País. Isto porque os benefícios estão maiores do que os custos dessa atividade ilegal. Destarte, o ganho médio do contrabando de cigarros equivale a 49,3% do ganho médio do tráfico, enquanto o custo e o saldo médio desse contrabando equivalem, respectivamente, 36,1% e 59,4% do custo e saldo médio do tráfico.[1] A lógica implícita no contrabando de cigarro é ganhar menos relativamente ao tráfico, porém, o risco de morte e de punição mais severa (o tráfico é considerado crime hediondo) é diametralmente oposta.

De modo inovador, e com base na equação de Becker (1968), Nickel (2019) perguntou qual o maior receio diante da efetividade de uma prática econômica criminosa (Ri) para amostra considerável de apenados de determinada Vara Federal de Foz do Iguaçu, sendo a maioria dos entrevistados condenados por contrabando. Dito de outra forma, qual o maior receio de um delinquente quando realiza seu crime econômico?

Inusitadamente, a perda da moral foi o maior temor diante de um ato ilegal praticado (41,4% dos pesquisados apontaram a variável Wi como maior receio). Em segundo lugar apareceu a probabilidade de ser preso [p(r)], conquanto 28,8% dos pesquisados apontaram a chance de serem presos como o segundo maior temor na prática de sua ilicitude. Nessa sequência, tem-se ainda o custo de execução e planejamento do crime (Ci), 12,6%; intensidade da pena [p(r. Ji], 9,9%; e custo de oportunidade (Oi), 6,3%.

Ora, era de se esperar que os dois maiores receios diante de uma prática criminosa econômica fossem, não necessariamente nesta ordem, a probabilidade de ser preso [p(r)] e a intensidade da pena [p(r. Ji]. Além disso, realça-se que a distância entre a perda da moral (41,4%) para a segunda posição, probabilidade de ser preso (28,8%), foi consideravelmente elevada (12,6 pontos percentuais). Por que isto vem ocorrendo? No caso específico do contrabando, segundo os entrevistados (frisa-se, a maioria por contrabando), em função de a principal motivação para seus crimes estar “relacionada com a ideia de ganho fácil/indução de amigos/cobiça, ambição, ganância/inveja/manter o status […]”, bem como porque “em relação ao custo/benefício da atividade criminosa, 73% dos entrevistados disseram que o benefício foi maior que o custo, contribuindo para que essas pessoas migrem para o ilícito” (NICKEL, 2019, p. 6). Outro fato curioso é ver o custo de execução e planejamento do crime que, em caso de malogro, significa a perda da carga contrabandeada, estar à frente da intensidade da pena, um contrassenso!

Tais apontamentos obtidos de dados primários, ou seja, perguntou-se diretamente aos delinquentes, adicionado à impunidade e/ou baixa punição, como aplicação de penas substitutivas de prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas e de prestação pecuniária, favorecem tão somente a ilegalidade. Vale dizer que a chance de sucesso de um criminoso de natureza financeira é estimada em 95% (SHIKIDA, 2018). Não é por achismo que se diz que o poder de polícia, por mais efetivo e competente que seja, não conseguirá, sozinho, diminuir a criminalidade. Este poder é imprescindível, mas precisa de auxílio contundente.

O que precisa ser feito então? Ora, se o preço médio dos cigarros lícitos é de R$7,51/maço, enquanto dos cigarros ilícitos é de R$3,44/maço (FSBCOMUNICAÇÃO, 2020), o debate sobre a incidência tributária no cigarro nacional precisa ser revisto; e sem gerar externalidades negativas, como estimulando o tabagismo. De que forma? Com base na análise econômica do crime, lançando um cigarro no mercado com precificação especial, apropriado para competir e substituir o cigarro contrabandeado. Para tanto, urge derrubar a política de preço mínimo dos cigarros (hoje de R$5,00, portanto, acima do preço médio do cigarro ilícito) para esta categoria. Nessa lógica, assume-se como válida a hipótese de que os hábitos dos fumantes no Brasil não se alterarão significativamente em termos de aumento de consumo – há estudo que corrobora isto, vide: Nicola et al. (2020). Ao revés, ocorrerá, sim, uma substituição do hábito de consumir o cigarro contrabandeado (atualmente com assaz vantagem no mercado, mas de duvidosa qualidade fitossanitária de produção), para este cigarro de categoria especial que opera dentro das regras estabelecidas pelas instituições constituídas no Brasil. Vale dizer que o cigarro contrabandeado, pela ótica da demanda, devido ao seu baixo preço, atinge mormente as classes menos abastadas, sendo praticamente inexistente nas classes mais abastadas. Os cigarros mais caros continuarão com a tributação existente.

Diante dessas evidências, a eficiência dessa estratégia de criar uma categoria com tributação específica, dando competitividade para este cigarro nacional, conseguirá, junto com o poder de polícia, dar um duro golpe no contrabando de cigarros. Com isto, reduziremos uma externalidade negativa que é muito pouco citada, mas com fortes indícios de que seja uma prática constante, qual seja, as organizações criminosas no Brasil já estão operando também nesse mercado.

Desse modo, quebrando o contrabando de cigarros, atinge-se igualmente o crime organizado. Conforme vivências de um pesquisador no cárcere que entrevistou centenas de bandidos, algumas retratadas em Shikida (2018) e outras em dezenas de palestras proferidas por esse pesquisador, atesta-se que o cigarro ilícito deixou de ser atributo de um “simples atravessador”. Esse mercado está cada vez mais profissionalizado e umbilicalmente vinculado com organizações criminosas, contribuindo para o aumento da violência e criminalidade.

Com efeito, a economia do crime procura entender as motivações para a prática delituosa financeira. Porém, similarmente sinaliza para ideias que podem fazer com que o benefício líquido da utilidade esperada criminosa (Ui) possa ser menor do que os custos. Assim, no presente estudo é preciso ser estratégico não abdicando, primeiramente, do fortalecimento do poder de polícia e da respeitabilidade pelas instituições jurídicas, que devem atuar de forma crível e justa, contribuindo para a dissuasão ao crime pela ótica da oferta. Segundo, enfrentar este problema também pela ótica da demanda (via consumidor), pois a criação de uma categoria de cigarros especial, que possibilite à indústria nacional competir com o congênere contrabandeado, é uma ação estratégica viável e plenamente exequível, não engendrando externalidades negativas.

Finalizando, como estudioso da mente criminosa há 22 anos, buscando aprender sempre mais, percebi, dialogando com centenas de presos pelo Brasil afora, que “anjos” e demônios” são frutos de nossas mentes, originários da confluência de bases familiares, religiosas e educacionais de cada cidadão. Todavia, estes “anjos” e demônios” podem ser potencializados pelos incentivos e dissuasões que as nossas instituições reproduzem. Qual o seu papel ou da sua instituição no combate ao crime, reflita?

Referências

AMARAL, J. A. da S. Determinantes da entrada das mulheres no tráfico de drogas: um estudo para o Acre (Brasil). Doutorado em Desenvolvimento Regional e Agronegócio. Unioeste, Toledo/PR. 2019.

BECCARIA, C. Dei delitti e delle pene (1764). English edition: Bellamy R (ed.). On Crimes and Punishments and Other Writings (trans: Richard Davies et al.). Cambridge: Cambridge University Press, 1995.

BECKER, G. S. Crime and punishment: an economic approach. Journal of Political Economy, Chicago, v. 76, n. 2, p. 169-217, 1968.

BENTHAM, J. Principles of Penal Law. Works of Jeremy Bentham, ed. J. Bowring. 1843, vol. 1.

BRENNER, G. A racionalidade econômica do comportamento criminoso perante a ação de incentivos. Tese de Doutorado em Economia. UFRGS, Porto Alegre/RS. 2001.

FRAGOSO, H. C. Direito penal econômico e direito penal dos negócios. Revista de Direito Penal e Criminologia, n. 39, p. 122-129, 2018.

FSBCOMUNICAÇÃO. Media Briefing. Setembro 2020. 6 p.

NICKEL, H. Análise da execução penal envolvendo crimes econômicos no Paraná cuja pena privativa de liberdade foi substituída por prestação de serviços e/ou pecuniária. Mestrado em Desenvolvimento Regional e Agronegócio. Unioeste, Toledo/PR. 2019.

NICOLA, M. L.; SHIKIDA, P. F. A.; MARGARIDO, M. A. Análise da estratégia de redução do consumo de tabaco por meio da elevação dos preços no Brasil sob a ótica da teoria econômica: estimativa e implicações. Revista Planejamento e Políticas Públicas (no prelo).

SCHLEMPER, A. L. Economia do crime: uma análise para jovens criminosos no Paraná e Rio Grande do Sul. Doutorado em Desenvolvimento Regional e Agronegócio. Unioeste, Toledo/PR. 2018.

SHIKIDA, P. F. A. Memórias de um pesquisador no cárcere. Foz do Iguaçu: Editora IDESF, 2018.

SHIKIDA, P. F. A. Uma análise da economia do crime em estabelecimentos penais paranaenses e gaúchos: o crime compensa? Revista Brasileira de Execução Penal, v.1, p. 257-278, 2020.

* Pery Francisco Assis Shikida é doutor em Economia Aplicada pela ESALQ/USP. Professor Associado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. E-mail: peryshikida@hotmail.com.

[1] Conforme estudos supracitados, em relação à avaliação do custo/benefício na prática do crime econômico, foi perguntado para os(as) apenados(as), em uma escala de 0 a 9, a partir de sua própria percepção, os custos e benefícios da prática criminosa de natureza econômica. A ideia é de captar uma relação numérica que dê a possibilidade de cálculo final do resultado líquido da atividade ilícita. O saldo médio se refere à diferença entre o benefício e o custo de todos(as) apenados(as) avaliados(as); assim é possível comparar, por exemplo, quanto o contrabando varia em relação ao tráfico e vice-versa.