A Fundação CAIXA e os Riscos Fiscais e Institucionais do PL 1312/2025

por: Lúcio Guerra
Especialista em Orçamento Público pelo TCU/SF/CD
Mestrando em Poder Legislativo

O Projeto de Lei nº 1312/2025, de iniciativa do Poder Executivo, propõe a criação da Fundação CAIXA, uma entidade privada, sem fins lucrativos, com personalidade jurídica própria e autonomia administrativa, financeira e patrimonial. Essa fundação seria financiada com recursos oriundos da CAIXA Econômica Federal e de suas subsidiárias, por meio de doações patrimoniais, contribuições periódicas não reembolsáveis e fornecimento de estrutura logística, tecnológica e operacional. A proposta atribui à nova entidade uma gama excessivamente ampla de finalidades, incluindo educação, assistência social, cultura, esporte, meio ambiente, inovação, ciência e tecnologia, além de ações voltadas à redução de desigualdades. Embora o projeto se apresente como um instrumento de inovação institucional, ele é um disfarce para fugir de regras fiscais, do controle democrático do gasto público, pelo Legislativo, via orçamento da União, e pela imprensa.

A proposta representa um desvio evidente das finalidades institucionais da CAIXA Econômica Federal, que é um banco público, voltado à operação de produtos e serviços financeiros, bem como à gestão de programas sociais e fundos públicos como o FGTS. Transformar a CAIXA em mantenedora de uma fundação privada, incumbida de executar políticas públicas amplas, rompe com sua missão legal e cria uma estrutura paralela à administração direta, sem os controles, a experiência institucional ou a legitimidade democrática dos órgãos ministeriais.

O ponto mais crítico da proposta está nos seus efeitos fiscais e orçamentários. O projeto não fixa nenhum teto para as transferências da CAIXA e de suas subsidiárias à Fundação, tampouco estabelece limites objetivos ou condicionantes. A redação vaga, que menciona percentuais sobre o “resultado” da instituição, e não sobre o “lucro”, permite interpretações arbitrárias e amplia o grau de incerteza. Além disso, o texto autoriza que a CAIXA cubra integralmente qualquer prejuízo financeiro da Fundação, sem qualquer contrapartida ou limitação, criando um passivo oculto que poderá se expandir indefinidamente. Tal lógica compromete a sustentabilidade financeira da CAIXA e enfraquece seus indicadores prudenciais, como o Índice de Basileia, a liquidez e os limites de exposição, podendo inclusive demandar futura capitalização por parte da União.

Esse modelo de financiamento representa, na prática, uma forma de renúncia de receita. Embora a CAIXA não integre o orçamento fiscal da União, ela distribui dividendos ao Tesouro Nacional. A apropriação de parte desses recursos para custear uma fundação privada implica redução da receita primária da União, o que, nos termos do art. 135 da LDO/2025, exige estimativa de impacto e compensação — medidas que não constam no projeto. A proposta, portanto, fere frontalmente as exigências legais de responsabilidade fiscal.

A estrutura concebida pelo PL 1312/2025 também viola o Novo Regime Fiscal estabelecido pela LC nº 200/2023. As despesas realizadas pela Fundação não serão computadas nos limites de despesa primária, tampouco estarão sujeitas ao contingenciamento previsto no art. 9º da LRF ou aos bloqueios automáticos de execução decorrentes do descumprimento dos limites fiscais. Isso permite que o governo execute políticas públicas relevantes fora do Orçamento Geral da União, burlando os instrumentos constitucionais de controle orçamentário e frustrando a autoridade do Congresso Nacional sobre o destino do dinheiro público.

O problema se agrava quando se analisa o impacto nas estatísticas fiscais do país. O Banco Central, ao calcular o valor das despesas primárias da União, considera apenas os haveres e obrigações do setor público não financeiro. Como tanto a CAIXA quanto a Fundação CAIXA estão fora dessa contabilização, as operações realizadas por essas entidades não serão refletidas nos relatórios fiscais oficiais. Isso significa que os dados apresentados ao mercado e aos organismos internacionais estarão subestimados, comprometendo a transparência das contas públicas e fragilizando a credibilidade da política fiscal.

Outro ponto de atenção é o profundo déficit de transparência da proposta. A Fundação CAIXA, por sua natureza jurídica privada, não será obrigada a executar suas operações por meio do SIAFI1 ou do Tesouro Gerencial2, ferramentas que garantem rastreabilidade e controle social sobre o gasto público. O texto do projeto tampouco prevê a publicação de relatórios anuais de impacto, nem a divulgação de informações detalhadas no Portal da Transparência. Essa opacidade contraria os princípios constitucionais da publicidade e da prestação de contas (accountability), além de dificultar a fiscalização por parte do Congresso Nacional, dos órgãos de controle e da sociedade civil. Estamos diante da criação de uma estrutura com baixa visibilidade institucional, financiada com recursos públicos disfarçados de doações privadas, operando à margem da legislação orçamentária e dos sistemas de controle estatal.

A amplitude das finalidades da Fundação Caixa, aliada à ausência de critérios técnicos para alocação dos recursos, abre também um grave precedente de uso político do orçamento. O projeto permite a realização de transferências a entidades, ONGs e movimentos sociais sem exigência de chamamento público, de licitação ou de parâmetros objetivos de seleção. Essa flexibilidade facilita o favorecimento de organizações alinhadas ao governo de plantão e dificulta a fiscalização da sociedade e dos órgãos de controle. Em paralelo, o PL não impõe requisitos mínimos de governança, como critérios de nomeação para dirigentes, regras de impedimento, exigência de auditoria externa ou comitê de auditoria, o que torna a gestão desta fundação vulnerável à captura política.

Não menos preocupante é o precedente institucional criado pela proposta. Uma vez aprovado esse modelo, nada impedirá que outras estatais, como o BNDES, o Banco do Nordeste ou o Basa3, sejam estimuladas a criar fundações semelhantes, multiplicando estruturas paralelas com baixa transparência, sem controle orçamentário e com alto custo fiscal oculto. A prática já foi iniciada no governo atual, como se vê no Fundo Pé-de-Meia4 e no fundo privado criado dentro do BNDES pela Lei do Mover5. O próprio Tribunal de Contas da União, por meio do Acórdão 297/2025, já apontou as ilegalidades e os riscos fiscais dessas estruturas, recomendando sua revisão. Ignorar esses alertas significa enfraquecer ainda mais a integridade das contas públicas.

A multiplicação desses orçamentos paralelos acarreta riscos macroeconômicos relevantes. A percepção de fragilidade fiscal aumenta o prêmio exigido pelos investidores para financiar a dívida pública, eleva a taxa Selic e dificulta o controle da inflação. Num contexto de juros reais elevados, como o brasileiro, esse tipo de iniciativa agrava as pressões inflacionárias e prejudica a sustentabilidade da dívida, podendo comprometer o equilíbrio fiscal de longo prazo.

Diante de todos esses elementos, conclui-se que o PL 1.312/2025 não apenas contraria os princípios da responsabilidade fiscal e da transparência administrativa, como também enfraquece os controles democráticos e cria brechas significativas para o uso político e ineficiente do dinheiro público. Sua aprovação representaria um retrocesso institucional com impacto duradouro sobre a governança pública e a credibilidade fiscal do país. Cabe ao Congresso Nacional exercer seu papel constitucional de fiscalização e contenção de abusos, rejeitando uma proposta que ameaça as bases do sistema republicano e da gestão responsável dos recursos estatais.

  1. Sistema Integrado de Administração Financeira do Tesouro Nacional – www.gov.br/tesouronacional/pt-br/siafi ↩︎
  2.  www.gov.br/tesouronacional/pt-br/tesouro-educacional/cursos-online-para-voce/tesouro-gerencial ↩︎
  3. Banco da Amazônia ↩︎
  4.  www.gov.br/mec/pt-br/pe-de-meia ↩︎
  5.  www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2024/Lei/L14902.htm ↩︎